Neste ano, a Alemanha celebra os 500 anos
da Reforma. Ela começou em 1517, quando um certo professor de Bíblia e
monge publicou em Wittenberg, na Saxônia, 95 teses contra mazelas
católicas romanas. Consideradas friamente, essas teses ainda não eram
particularmente revolucionárias, mas mesmo assim a época revelou-se
suficientemente madura para transformar aquela centelha num incêndio de
grande porte. O tal monge é hoje mundialmente famoso: Martinho Lutero.
Neste assim chamado “ano de Lutero” lembramo-nos de como ele extraiu do
nada uma alternativa evangélica à igreja católica romana. Conforme
alguns dizem, ele sinalizou com isso o fim da Idade Média e o início da
Idade Moderna.
Isso, porém, não correspondia necessariamente às intenções de Lutero.
O reformador nunca se considerou pioneiro de uma nova época, mas um
proclamador dos dias finais segundo o modelo de Noé. Quando Lutero fez
suas descobertas “evangélicas”, ele não pretendia fundar uma nova
igreja, mas obter a necessária reforma da igreja existente na iminência
da irrupção do “juízo final”, antes do fim do mundo antigo.
No início da Reforma, Lutero escreveu a um amigo: “Tenho a convicção
de que o último dia está às portas”. Vinte anos mais tarde ele ainda
reafirmava isso: “É a última hora”. Ele cria que Jesus Cristo voltaria
logo para julgar a antiga criação e para trazer um novo mundo celestial.
Assim, por exemplo, ele se casou com a freira Catarina de Bora para
estabelecer um sinal, ainda que na sua opinião o “tempo era breve” até
que se manifestasse o “justo juiz” Jesus Cristo.
Martinho Lutero cria que a maioria das profecias sobre os tempos
finais que Jesus Cristo e os apóstolos haviam anunciado se cumpriram nos
dias dele e que por isso o fim estava próximo. Já no estágio inicial da
sua reforma, Lutero se convencera “de que o papado era a sede do
verdadeiro e encarnado Anticristo”, porque o papa queria “ter Deus e sua
Palavra submissos a ele, com ele assentado por cima”. No entanto,
Lutero não chamou nominalmente algum determinado papa de anticristo.
Para ele, o Anticristo era um “conceito coletivo”, uma “instituição” que
“falsifica a verdade de Cristo”, conforme explica o biógrafo de Lutero
Robert Bainton. Por isso Lutero podia dizer que “nestes últimos tempos”,
o Diabo já “vem fortalecendo o Anticristo e o reino anticristão há
alguns séculos”. Lutero entendia que o trono papal já se tornara
anticristão mais de 400 anos antes (do tempo dele), que o Diabo fora
solto e que a última época das perseguições dos tempos finais havia
começado.
Lutero viu como confirmação dessa ideia a reação às suas teses
reformatórias elaborada pelo importante teólogo romano Silvestro da
Prierio. Segundo o historiador eclesiástico Heiko Oberman, Prierio
afirmava sem rodeios que o papa não conhecia nenhum juiz acima dele e
que por isso não poderia ser deposto quando conduzisse, junto com ele,
“as multidões dos povos ao Diabo no inferno”.
Martinho Lutero enxergava o mundo cheio “de exemplos da ira e do
juízo de Deus”. Segundo ele, a humanidade estava madura para o juízo
final. Lutero considerava a si mesmo um pregador do arrependimento nos
tempos finais, como Noé. Embora não se considerasse no mesmo nível que
Noé, ele e seus pregadores evangélicos conclamavam os papistas, nobres,
burgueses e camponeses ao arrependimento e à conversão a Deus, tal como
Noé fizera nos tempos antigos – “porque o Dia do Senhor estava às
portas”. Aos olhos do reformador alemão, o apocalipse era iminente.
Lutero encontrou a razão da sua comparação com Noé nos sermões
escatológicos de Jesus Cristo no monte das Oliveiras (Mt 24–25). “Cristo
mesmo testifica que os últimos tempos serão similares aos tempos de
Noé”, diz Lutero – e esses últimos tempos teriam chegado em seus
próprios dias, “porque quase todos os sinais que Cristo anuncia, bem
como os apóstolos Pedro e Paulo, já aconteceram”. É verdade que o dia
exato da volta do Senhor “não há como saber”, mas “certamente tudo está
perto do fim”.
O historiador eclesiástico Heinz Schilling escreve que Lutero via,
por exemplo, nas novas doenças que chegavam à Europa, “vindas das ilhas
descobertas no oceano”, “um sinal do fim do mundo”. O reformador alemão
também incluía entre os sinais dos tempos as catástrofes naturais
extraordinárias dos seus tempos, como furacões e enchentes.
Para ele, o papa e seu seguidores eram os “falsos profetas” dos
últimos tempos anunciados por Cristo. Por isso, a Roma religiosa seria a
sedutora prostituta Babilônia de Apocalipse 17, cujas mãos estavam
manchadas do sangue dos crentes autênticos. E quando o Império Otomano
dos turcos avançou sobre a cidade de Viena, Lutero viu nisso tanto um
flagelo de Deus para a Europa cristã como também um instrumento de
Satanás em sua revolta final contra Deus. A certa altura, Lutero
considerava os turcos como “Gogue e Magogue” de Apocalipse 20, assim
como também via neles a primeira besta de Apocalipse 13, a qual ele
também já identificara com o imperador da casa de Habsburgo. Lutero
tinha flexibilidade suficiente para corrigir sua visão da profecia
bíblica e adaptá-la correspondentemente quando considerasse necessário.
Em última análise, para ele o papado de Roma e o islã dos turcos
constituíam a sedução e a perseguição dos últimos dias, à qual a Bíblia
se refere. Já o verdadeiro evangelho, que Lutero redescobrira e que era
então anunciado por toda parte, era a resposta de Deus a esses ataques
escatológicos do Diabo. Para o reformador alemão, isso se revelava um
sinal inequívoco de que o fim tinha de ser iminente (cf. Mt 24.14).
Assim, Lutero dedicou-se em suas “horas vagas”, como ele dizia, a
alguns cálculos escatológicos superficiais, que o levaram à conclusão de
que o mundo “não duraria outros 100 anos”, mas ele nunca se fixou numa
data determinada. Quando o matemático Michael Stifel, seu amigo,
calculou a volta do Senhor Jesus para 19 de outubro de 1533, Lutero
imediatamente rejeitou aquilo como algo antibíblico, mas observou que
isso era apenas uma “contestaçãozinha”. Enquanto o olhar do cristão não
se desviasse de Cristo, Lutero conseguia conviver com as especulações. O
importante para ele era e permanecia sendo que somente Cristo e sua
Sagrada Escritura se mantivessem no centro.
Lutero mesmo achava que seria possível encher um livro inteiro com os
sinais da proximidade do fim. Às vezes ele também era bastante criativo
na sua interpretação dos sinais. Schilling relata que, quando as
rebeliões dos camponeses chegaram ao ápice, ele enxergou um sinal da ira
divina em um arco-íris no inverno, enquanto o líder rebelde Thomas
Müntzer viu o mesmo como “garantia da aprovação e da ajuda divinas”.
Para Lutero, os eventos que ocorriam na igreja e no mundo simplesmente
coincidiam extremamente com as profecias da Bíblia. Ele não conseguia
chegar a outro resultado a não ser que “o dia final não deve estar longe
porque o texto obriga fortemente que seja assim”. Por isso, o
reformador desejava que a comunhão dos cristãos constituísse um
“paredão” contra a “ira de Deus” ao lutar até a “hora do juízo” por meio
de oração, pregação e pranto em favor de uma humanidade perdida. Assim,
ele aproveitava o cumprimento da profecia escatológica e os muitos
sinais que cria enxergar em seus dias para apelar à conversão a Deus.
Naqueles dias, infelizmente, também era comum o ódio aos judeus.
Assim, por exemplo, o tão renomado humanista Erasmo de Roterdã louvava a
França por estar livre de judeus, e considerava o ódio aos judeus uma
virtude cristã. Os judeus desempenhavam o papel de bodes expiatórios dos
medos dos cristãos. A Inglaterra, a França, a Espanha e Portugal haviam
expulsado os judeus das suas terras. Legalmente, eles viviam na Europa
sob permanente servidão “em razão da sua irresgatável culpa pela morte
de Jesus”. Estavam impedidos de exercer uma série de profissões, razão
por que só lhes restava o comércio financeiro, uma vez que a igreja dos
cristãos proibia lucrar com negócios a juros. Os bancos judeus eram
imprescindíveis para a sociedade. Se, contudo, eles enriquecessem com
isso, atraíam a ira da população, que supunha estarem “aliados a poderes
demoníacos”, segundo explica o historiador Thomas Kaufmann.
O ódio aos judeus tinha motivação cultural e religiosa. Apesar de
rivalidades locais, o que unia a sociedade medieval não era tanto a
origem étnica, mas, mais do que isso, a religião aliada a diversas
superstições sobre bruxas, santos protetores, duendes e homicídios
rituais, devastadoramente atribuídos aos judeus. Lutero movia-se em um
mundo no qual a inimizade aos judeus era louvável.
Nessas circunstâncias, parece milagre que o corpo estranho judeu
nunca tenha sido completamente exterminado. Humanamente falando, os
judeus deviam isso ao patriarca católico Agostinho de Hipona... O
cristianismo enfrentava um problema. Se a igreja era o “verdadeiro
Israel espiritual” – conforme criam cristãos já desde meados do século
II ou até antes –, por que então ainda existia um Israel étnico, um povo
judeu? Agostinho ofereceu uma solução muito interessante: os judeus
eram preservados para confirmar a veracidade do cristianismo. Sua
existência e as escrituras sagradas provavam que os cristãos não haviam
inventado as profecias sobre o Messias Jesus. Com isso, Agostinho ao
menos assegurou que os judeus fossem tolerados na sociedade
cristianizada da Europa. Agostinho também cria que no fim dos tempos
muitos judeus se converteriam durante a “perseguição pelo Anticristo”, e
que então Jesus Cristo voltaria para trazer a eterna glória do céu e o
fim do mundo antigo.
Tomás de Aquino, o teólogo medieval mais influente depois de
Agostinho, também cria “numa futura conversão dos judeus como povo”,
conforme expõe Michael Vlach em seu livro Has the Church Replaced Israel?
Diante desse pano de fundo, Lutero disse que, com o advento da
Reforma, teria começado “uma nova era final para os judeus”. Em uma
exposição dos Salmos, ele opinou que Deus converteria os judeus quando
“a plenitude dos gentios tivesse atingido a salvação”. Isso aconteceria
nos tempos finais que, na opinião de Lutero, haviam chegado. Por isso
não é de admirar que, no início da Reforma, ele ainda escrevesse em tom
otimista: “Verdadeiramente, agora que desponta e brilha a dourada luz do
evangelho, há esperança de que muitos dos judeus sejam convertidos de
modo consciencioso e fiel, e assim, atraídos seriamente para Cristo...”.
A gentileza que Lutero demonstrou aos judeus no início da Reforma
estava estreitamente ligada à sua expectativa escatológica. Antes da sua
descoberta do evangelho, as exposições do professor de Bíblia Martinho
Lutero, àquela altura ainda católico romano, continham formulações de
cunho medieval hostis aos judeus. No entanto, mais ou menos ao mesmo
tempo em que ele concluiu que o trono papal era anticristão e que os
últimos dias teriam começado, ele também passou a dirigir-se aos judeus
com gentileza.
Hoje Lutero é tristemente famoso por suas declarações antijudias no
outono da sua vida, mas nem sempre foi assim. Quando, no início da
Reforma, seus adversários o acusaram de rejeitar o nascimento virginal,
ele se defendeu por meio de um escrito extraordinário para o seu tempo,
intitulado Dass Jesus Christus ein geborener Jude sei [Jesus Cristo é um judeu por nascimento].
Jesus Cristo era e é “descendente de Davi” (cf. 2Tm 2.5,8). Lutero
reconheceu isso e por essa razão se expressou de forma relativamente
benevolente sobre o povo do qual provinha o seu Senhor e Deus feito
homem. Lamentava que os cristãos tivessem feito muitos males aos judeus,
dizendo: “E se eu tivesse sido judeu e tivesse visto tais tolos e
ignorantes governar e ensinar a fé dos cristãos, eu antes me teria
tornado um porco do que cristão”.
O reformador alemão esperava que, “se lidarmos gentilmente com os
judeus e os ensinarmos cuidadosamente na Escritura Sagrada, muitos se
tornarão autênticos cristãos, retornando à fé dos seus pais, dos
profetas e patriarcas”. Lutero sabia que os apóstolos “também eram
judeus” e que lidavam “fraternalmente” com os não-judeus, conduzindo-os
dessa maneira à fé. Que agora ocorresse também o contrário.
Para Martinho Lutero, sua redescoberta do evangelho e a disseminação
das suas ideias reformadoras era um sinal dos tempos finais. Nos seus
dias, ele enxergava a chegada do cumprimento da profecia do Senhor Jesus
no monte das Oliveiras: “E este evangelho do Reino será pregado em todo
o mundo como testemunho a todas as nações, e então virá o fim”
(Mt 24.14). O fim estava próximo porque agora o evangelho genuíno era
pregado em todo o mundo.
Baseado nessa expectativa, ele assumiu, em relação ao povo judeu, um
cauteloso otimismo e apelou à bondade em relação a eles, porque em breve
o judeu Jesus Cristo viria e, com ele, o dia do juízo. E talvez até
então mais alguns dos seus irmãos “segundo a carne” ainda o
reconhecessem como seu Messias.
Por outro lado, mesmo em seus escritos amigáveis aos judeus, Lutero
não via nenhum futuro para Israel em um Estado próprio. Segundo Oberman,
mais tarde ele até jurou que seria “o primeiro” a se fazer circuncidar
“caso os judeus algum dia conseguissem voltar a fundar um Estado”.
Embora considerasse “bem” possível uma conversão em massa dos judeus
“antes do fim do mundo”, “mas que retornem à terra judaica e construam
uma cidade” era algo que em sua opinião jamais aconteceria.
No entanto, a posição basicamente positiva de Lutero mudou quando a
esperada conversão escatológica dos judeus não ocorreu e alguns rabinos
até se manifestaram depreciativamente sobre Cristo, após um encontro com
Lutero. Martinho Lutero retornou repetidamente a esse evento, doloroso
para ele. Curiosamente, muitos judeus viam nas convulsões da época da
Reforma um sinal “da iminente chegada” do seu Messias, comenta o
estudioso de idiomas Dietz Bering – embora os judeus religiosos não
pensassem no verdadeiro Messias, Jesus. Os irmãos físicos de Jesus
manifestavam desprezo pela Reforma evangélica.
A resistência do povo judeu contra o evangelho que Lutero descobriu
despertou amargura nele. Justamente o seu último sermão terminou com a
advertência mordaz contra os tais judeus que não queriam converter-se e
que “não intentavam nada diferente do que sugar e [se possível] matar”
os cristãos. Assim, em relação aos judeus, Lutero não se manteve fiel à
sua própria exclamação: “Perseverem, que a esperança é certa!”.
Martinho Lutero não era infalível, e tinha plena consciência disso.
Ele enfatizava que “acessos de ira e verborragia” eram seus maiores
problemas. Uma das manchas no legado do reformador é o seu
relacionamento contaminado com o povo judeu. Entre outras coisas, ele
chegou a recomendar que se queimassem suas sinagogas, destruíssem suas
casas e confiscassem suas escrituras.
O ódio de Lutero aos judeus é uma questão tão crítica que por causa
dela já se apresentaram algumas curiosas propostas de solução. A
cientista berlinense Eva Berndt acha que os escritos antijudeus de
Lutero seriam falsificações e que ele mesmo sempre teria mantido uma
atitude amigável aos judeus. É uma ideia atraente, mas que infelizmente
não foi confirmada pela pesquisa histórica eclesiástica. E justamente
historiadores cristãos, especialmente luteranos, teriam interesse em
limpar a fama de um dos seus maiores heróis.
Parte da explicação do ódio de Lutero aos judeus é o clima antijudeu
da sua época e o fato de que a conversão do povo judeu que ele esperava
para o fim dos tempos não ocorreu. Outra explicação para a atitude de
Lutero pode ser encontrada na sua noção dos tempos do fim, nos quais ele
imaginava viver. Aquilo exacerbou ainda mais o seu rigor antijudeu.
Segundo Lutero, o mundo estava “sujeito ao Diabo”, o fim era iminente e
por isso ele mobilizou armas pesadas contra todos que ele identificava
como inimigos do evangelho.
O ódio de Lutero aos judeus não tinha nada a ver com o ódio racial
dos nazistas alemães cerca de 400 anos depois, mas provavelmente mais
com suas crenças escatológicas e demonológicas. Ele estava convicto de
que o homem se encontrava em meio à última fase da luta cósmica entre
Deus e o Diabo. Qualquer um, então, que se opusesse a Cristo, constituía
nesse conflito escatológico uma ferramenta do Diabo. Segundo critérios
modernos, também os escritos agressivos de Lutero contra os fiéis ao
papa e os camponeses rebeldes, vinte anos antes das suas diatribes
antijudias, representam pregação de ódio, segundo afirma Heiko Oberman.
Para Lutero, os judeus, tal como antes os camponeses, os papistas, os
entusiastas e os “falsos irmãos”, tornaram-se globalmente instrumentos
escatológicos do Diabo. Eles turvavam o caminho da salvação, que ele
havia “redescoberto para ele e o mundo depois de tão demorados
sofrimentos da alma” (Schilling). Por isso o reformador se atirava
repetidamente de corpo e alma em raivosas controvérsias. Tratava-se do
evangelho redescoberto que, diante da iminente ira divina no dia final,
não deveria desaparecer.
Lutero entendia a rejeição e as calúnias dos judeus de que ficava
sabendo como obstinação e desvario. Contrariamente à sua opinião
anterior, ele afirmava em época mais tardia da sua vida que Israel
estaria “condenado para todo o sempre”. Ele via nos judeus do seu tempo
literalmente uma aliança com o Diabo. A convicção escatológica de Lutero
permaneceu a mesma durante toda a sua vida, mas seu conteúdo mudou: se
no início da Reforma ele era mais otimista, no final da vida ele se
tornou cada vez mais pessimista.
Na verdade, Lutero considerava suas terríveis recomendações
antijudias como “rigorosa misericórdia”. Na sua opinião, ela poderia
contribuir para talvez ainda arrancar do fogo algumas das presas do
Diabo. Por outro lado, Dietz Bering constata em uma análise que Lutero
foi mais duro em seu julgamento dos judeus do que com todos os outros
que ele supunha estarem aliados a Satanás. Aí então parece que as
convicções escatológicas e demonológicas de Lutero eram novamente
influenciadas pela mentalidade popular medieval hostil aos judeus. Com
efeito, Lutero foi até o fim um homem medieval, que também cria em
bruxas e feitiçaria.
A ira de Deus, que no dia final sobrevirá a todos os homens não
salvos, era para Lutero uma realidade concreta e imediata. Cristo
“descerá no dia final com grande e poderosa majestade e, com ele, todas
as hostes de anjos, e ele se assentará nas nuvens e todos o verão.
Ninguém pode esconder-se dele a ponto de poder fugir, mas todos terão de
se apresentar”.
Isso será terrível para todos os que não pertencem a Cristo. Lutero
reconheceu que “Deus, em sua natureza e majestade, é nosso inimigo; ele
exige o cumprimento da lei e ameaça os transgressores com a morte”. O
problema insuperável é que ninguém consegue cumprir a lei de Deus e
agradá-lo. É necessário que o próprio Deus tome a iniciativa. Lutero
acrescenta: “Quando, porém, ele se une à nossa fraqueza, ele não é nosso
inimigo”.
Essa união só pode efetivar-se na cruz, onde ocorre a “feliz troca” e
“a pobre, desprezada e malvada prostitutazinha” se torna a noiva de
Cristo. Por isso, o dia final será por um lado “um dia terrível”, mas
por outro também “consolador: terrível para todos os descrentes e
ímpios” que não têm Jesus Cristo, “consolador para todos os crentes e
tementes a Deus” unidos ao seu Salvador pela fé.
Assim, em última análise, a expectativa escatológica de Lutero para
os cristãos não era pessimista, mas otimista. Sua “teologia da cruz” era
inseparável da sua teologia da ressurreição. Ele estava convicto de que
os cristãos poderiam ressuscitar e ser transformados a qualquer
momento, “num abrir e fechar de olhos” (1Co 15.52). Isso ocorrerá quando
irromper o dia final, quando os crentes, quer falecidos, quer vivos,
“serão arrebatados no ar, ao encontro do Senhor, para estarem com o
Senhor para todo o sempre”. Por isso, segundo Lutero, os crentes podem e
devem dizer: “Vem, amado dia final. Amém”.
Conforme Lutero expressou de forma tão palpável, os salvos “passarão
do corpo mortal e malcheiroso para um corpo belo, maravilhoso,
perfumoso”. Homem permanecerá homem, mulher continuará mulher, “cada um
segundo sua natureza e espécie, embora a aparência e o uso do corpo seja
outro”. Por isso, quando faleceu sua filha Magdalena, de treze anos,
Lutero pôde consolar-se na confiança de que “Ah, querida Lena, você
ressuscitará e então brilhará como as estrelas e o sol”.
O dia final trará uma efetiva vida na ressurreição em um novo
universo com Deus. Era o que Lutero cria: “Aguardo uma outra vida de que
tenho mais certeza do que desta que tenho diante de mim”. Ele tinha
certeza de que “o homem foi criado para a vida”. Por isso esperamos
“ansiando com direito por aquele dia no qual tudo será restaurado”.
Lutero cria que toda a criação será “transformada” e “bela” tal como
“também nós”. Ele não era um profeta da ruína do mundo, mas um
proclamador da renovação do mundo: “Os céus e a terra serão renovados
por nossa causa”. Para os cristãos, esta vida é “um preparo para o
futuro”. E se Deus “adorna esta vida depravada com tantos e incontáveis
bens, o que ele fará na vida futura, em que não haverá mais pecado e só
reinará eterna justiça?”
Assim, o novo mundo de Deus será “transfigurado por Cristo e será cem
mil vezes mais maravilhoso que o atual”. “E então”, dizia Lutero,
“sairei do meu túmulo como uma estrela brilhante”. E “quem não apontar o
seu coração para aquela vida”, enfatizou, “não sabe o que é a fé e o
evangelho”.
Mesmo assim, o reformador declarou: “Tão pouco como as crianças no
ventre da mãe têm noção da sua chegada, nada sabemos da vida eterna”.
Ele evitava especulações sobre a nova criação depois do dia final.
Em última análise, quando Lutero falava do dia final, ele aguardava
uma pessoa: Jesus Cristo. “Porque, como diz o apóstolo, ele voltará e
aparecerá com certeza e se manifestará como verdadeiro Deus e Salvador, e
isso será maravilhoso.” Como uma noiva, ele aguardava ansiosamente o
noivo que viria para buscar sua esposa para estar para sempre em sua
casa celestial. Em uma carta, Lutero animou um pastor com as palavras:
“Ressuscitaremos e estaremos com ele eternamente. Trate, portanto, de
não desprezar sua santa vocação. Ele, que nos livrará de todo mal, virá e
não demorará”.
Como Jesus Cristo ocupava o centro do pensamento de Martinho Lutero,
sua expectativa de curto prazo também se mantinha sóbria. Não lhe
importava estar necessariamente vivo quando Jesus voltasse. O que ele
queria era finalmente ver o seu Senhor e Salvador, e se para isso ele
tivesse de morrer antes da volta de Jesus Cristo, nada tinha a opor.
Assim, por exemplo, quando uma princesa lhe desejou vida longa, Lutero
disse resolutamente em uma daquelas suas fases mais depressivas: “De
modo nenhum! Ainda que Deus me oferecesse um paraíso para que eu
permanecesse mais quarenta anos nesta vida, eu não desejaria. Preferiria
contratar um carrasco que me cortasse a cabeça, tão mau está o mundo
agora”.
Portanto, para Lutero o anseio de viver até o fim dos tempos era
limitado. Ele simplesmente queria ver Jesus – fosse através da morte ou
pela irrupção do dia final. Lutero sabia que iria ressuscitar, e isso
lhe bastava. Sua expectativa de curto prazo girava em torno da pessoa de
Jesus Cristo.
Diante da sua visão dos tempos finais e da sua expectativa de curto
prazo, porém, Lutero não caiu na inércia ou em um ascetismo irrealista.
Pelo contrário: por esperar Cristo e a ressurreição – não o juízo –, sua
teologia não era sombria, complicada ou opressiva, mas positiva diante
da vida que Deus lhe dera. Porque “onde está o Espírito do Senhor ali há
liberdade” (2Co 3.17). Para ele, espiritualidade nos tempos finais
significava levar “uma vida tranquila e pacífica, com toda piedade e
dignidade” (1Tm 2.2). De forma bem marcante, ele dizia: “Gerar
descendentes, amar a esposa, obedecer à autoridade são frutos do
Espírito”.
Trata-se de honrar a Deus mediante uma vida frutífera que seja
“piedosa e cristã”. Isso é o que deveria ser “nossa principal
preocupação”. E isso será possível se o Espírito Santo conceder às
pessoas a fé em Jesus Cristo, renovando sua natureza e seu comportamento
ao inscrever os “mandamentos de Deus” em seu coração renovado. Porque é
o Espírito Santo que concede força aos crentes, que consola sua
“consciência desanimada, deprimida e fraca” e lhes incute o “verdadeiro”
temor e amor a Deus. Por sua vez, o Espírito Santo está presente e atua
onde Cristo for pregado, o qual para Martinho Lutero era o centro da
Escritura Sagrada.
Por isso ele recomendava: “Vá suprir-se da fonte e leia a Bíblia com
zelo!” – “Quando lanço mão da Escritura”, explicava Lutero a respeito
dos ataques do Diabo, “eu já venci”. Ele próprio experimentava o reforço
para a sua débil fé quando esta, “por menor que seja, agarra o Senhor e
sua Palavra”. A Palavra de Deus desempenhava um papel central no
pensamento de Lutero, pois “onde está a Escritura, ali está Deus”.
Especialmente durante os ataques do Diabo, Lutero experimentava “como
a Palavra de Deus é justa, verdadeira, doce, amável, poderosa e
consoladora”. A razão é que, pela ação do Espírito Santo, a Escritura
Sagrada transforma “aquele que a ama, inserindo-a nele e em suas
forças”. Isso também é acompanhado do “muro de ferro” da oração
constante. “É preciso ter em mente que todo o nosso abrigo e proteção
repousam exclusivamente na oração.” É assim que os crentes sempre
poderão prevalecer, “cada vez mais pela oração e a leitura da Escritura
Sagrada”, na luta espiritual dos últimos tempos.
No entanto, a batalha da fé não é uma luta solitária. Lutero não
concebia uma vida cristã individualizada. Em última análise, um combate
bem-sucedido só será possível na comunhão dos santos, na igreja do Deus
vivo. A propósito, nos tempos de Lutero, muitos nem sequer sabiam ler,
quanto menos tinham condições de adquirir uma Bíblia.
Martinho Lutero reconheceu que “quando Eva foi passear sozinha no
paraíso, o Diabo a enganou. Tenho experimentado que nunca caí mais fundo
no pecado do que quando estava só”. Por isso “procure um irmão cristão,
um conselheiro sábio. Fortaleça-se na comunhão da igreja”. Lutero
recomendava “companhia, inclusive feminina” e falava em “comer, dançar,
brincar e cantar”. Claro que sempre em contexto casto – por toda a vida
ele teve repulsa pela liberalidade sexual e o cultivo de vícios.
O historiador eclesiástico Carl Trueman constata que a receita de
Lutero para uma vida cristã frutífera é “refrescante em sua simplicidade
e franqueza” porque o cristão avança “ao ler e ouvir” a Palavra de
Deus, e isso “principalmente” na comunhão. Uma comunidade cristã estará
presente sempre “onde a Palavra” for pregada, ensinada, incutida e
vivida na forma de um “catecismo” evangélico. “O Espírito Santo precisa
trabalhar constantemente em nós por meio da Palavra”, dizia Lutero.
Sim, Lutero enxergava muitos sinais do fim dos tempos, mas sua
convicção terá sido que o sinal definitivo da aproximação do dia final
era que a Palavra de Deus seria ignorada. O reformador insistia e
repetia que “não poderá sobrevir nenhuma ira maior de Deus do que ao se
subtrair a sua Palavra”. “Se eu quisesse amaldiçoar alguém e lhe desejar
muitos males, eu lhe desejaria o desprezo pela Palavra divina, porque
então ele teria tudo junto: a desgraça interna e externa para a qual o
mundo com certeza está caminhando.”
Para Lutero, a grande característica do anticristo papal não era sua
decadência ou evidente imoralidade, mas o fato de que ele se posicionava
acima da Palavra de Deus e não aceitava nem anunciava a Bíblia como
autoridade. A decadência moral, as mazelas sociais e os costumes
depravados são o resultado inevitável do desprezo pela Palavra de Deus.
Essa era a convicção de Lutero. Por isso, antes de tudo, o seu legado
foi: “Se eu tivesse que morrer neste momento, não recomendaria aos meus
amigos nada além de, após a minha morte, se ocuparem com máximo zelo da
Palavra de Deus”.
No contexto do chamado ano de Lutero em 2017, fala-se e escreve-se
muito sobre Lutero. Tanto crentes como não crentes esforçam-se
igualmente em encontrar e novamente perder belas palavras sobre o
reformador alemão. No entanto, tal como o próprio Lutero profetizou, o
problema é que “muitos reverenciarão a casca quando eu estiver morto, ou
seja, o nome”, mas não o cerne. Quem quiser honrar Lutero corretamente
precisa penetrar até o cerne, até aquilo que ele defendia, e isto
permanece sendo a Palavra de Deus.
A decadência moral da sociedade indica a extensão do desprezo pela
Palavra de Deus. Já em seus próprios dias Lutero se queixava da falsa
segurança disseminada entre muitos cristãos, um verdadeiro “fastio da
Palavra divina”. Lutero opinava que muitos crentes ouviam a Palavra, mas
“ela entrava por um ouvido e saía pelo outro”. Para Lutero, o pior e
inequívoco sinal do juízo de Deus era a igreja do Deus vivo ignorar
deliberadamente sua Palavra. “Oro constantemente contra tal segurança”,
declarou o reformador, “e vou repetindo meu catecismo, orando
diariamente para que Deus me conserve junto à sua santa e pura Palavra,
que eu não me canse dela ou suponha já ter esgotado seu estudo”.
Esse era o propósito de Lutero e também deveria ser o nosso: mais do
que nunca, importa nestes últimos tempos concentrar-se no cerne, e isto é
e permanecerá sendo eternamente Jesus Cristo e o seu evangelho,
revelado com compromisso em sua Palavra.
— René Malgo
Extraído de Revista Chamada da Meia-Noite outubro de 2017
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