Friedrich Hilliges
Há mais de 70 anos terminou a Segunda Guerra Mundial e, com ela, chegou ao fim o massacre de judeus pelos nazistas. Estas são algumas memórias do tempo que antecedeu essa barbárie.
No começo da década de 1920 meu pai viajava sempre a negócios a Leipzig, na época uma florescente cidade alemã. Participava de uma feira anual e costumava jantar com outro homem de negócios. Em um desses encontros, meu pai procurava por um documento, e sem querer retirou seu Novo Testamento do bolso do casaco. Ele costumava carregar o livro para onde quer que fosse. Por um momento, o olhar de seu conhecido pousou sobre o Novo Testamento. Sem rodeios, perguntou que livro era aquele. Meu pai ficou surpreso com a curiosidade e espontaneidade de seu interlocutor e entregou-lhe o livro, que seu interlocutor observou com atenção. O fato de ser justamente a mais nova edição Elberfelder, uma versão que viria a se tornar muito popular, despertou ainda mais o interesse de seu conhecido. Ele contou resumidamente, mas com palavras de admiração, a história de um bom amigo seu chamado Adolf Hitler, que teria muitas ideias políticas grandiosas. Disse que Hitler possuía exatamente essa edição do Novo Testamento. Como queria muito adquirir um Novo Testamento dessa mesma edição, ele pediu a meu pai o endereço exato da editora.
De início, meu pai não conseguiu entender o grande interesse de seu conhecido pelo Novo Testamento. “Hitler” ainda era completamente desconhecido naquela época, e ele deixou o assunto de lado.
Exatamente um ano depois, os dois viajantes se encontraram novamente. Ainda antes de ocuparem seus lugares à mesa, o amigo puxou do bolso seu próprio Novo Testamento recém-adquirido. Todo feliz, falando de seu amigo Hitler, ele mostrou o livro a meu pai. Este o pegou para folhear e ver se a editora era a mesma do seu próprio Novo Testamento. Percebeu que os livros eram idênticos, da mesma versão e da mesma editora. Percebeu que muitas passagens estavam sublinhadas, permitindo que ele constatasse o que chamou a atenção do leitor.
Para seu conhecido, havia sido muito importante conseguir exatamente a mesma edição de meu pai e de Hitler. Como não conhecia a Bíblia, ele precisava que os livros fossem exatamente iguais para conseguir sublinhar e marcar as mesmas passagens que Hitler havia destacado em seu Novo Testamento. Ele se guiara pela numeração das páginas e pela localização visual dos versículos para ter seu próprio exemplar bem igual ao de Hitler.
As marcações de Hitler, que esse conhecido do meu pai admirava tanto, revelavam quais passagens o futuro Führer considerava importantes. Meu pai percebeu que Hitler deveria ser uma dessas pessoas extremamente contrárias aos judeus, um membro da classe política que estava começando a dar o que falar. Os textos sublinhados eram todos aqueles que diziam que os judeus ou seus líderes devem ser castigados de alguma forma (por exemplo, Mt 3.7; Mt 23.15-36; Lc 11.39-44), que apontavam o mal que se escondia sob a hipocrisia religiosa (por exemplo, Lc 11.46) ou profetizavam juízo e condenação (por exemplo, Mt 3.10; Mt 7.15-19). Esse Hitler era claramente um homem que odiava os judeus e procurava ver seu ódio apoiado e confirmado pela Bíblia.
Esse episódio aconteceu muito antes de 1933, ainda antes do tempo em que o nome de Hitler começasse a surgir para brilhar no firmamento da política alemã. O amigo de meu pai faleceu no ano seguinte, de forma que eles não se reencontraram na próxima feira de Leipzig. Não houve continuação desse contato indireto, quando meu pai teve um vislumbre do que se passava na cabeça e no coração de Adolf Hitler. O que ele viu no Novo Testamento sublinhado, de forma exatamente igual ao Novo Testamento em que Hitler se baseava, bastou para que meu pai adquirisse convicções que marcariam seu futuro, mesmo que naquela época ele nem imaginasse o que realmente estava por vir através desse homem.
Quando Hitler foi se tornando cada vez mais conhecido e poderoso, meu pai se lembrou daquilo que havia acontecido muitos anos atrás. Ele se recordou do que Hitler sublinhara em seu Novo Testamento. Por isso, desde o início meu pai não caiu na sedução e no engano desse tão admirado “homem forte” chamado Hitler, pois estava certo de que, se ele assumisse o poder, seria o fim da Alemanha. Essa convicção poupou meu pai de muitos falsos compromissos e, mais tarde, em meio a graves perdas familiares (três irmãos meus morreram na guerra e todas as propriedades e negócios da família foram destruídos), ele se manteve calmo e consolado, convencido de que acontecera o que tinha que acontecer, porque há um Deus no céu que disse que aquele que tocasse nos judeus estaria tocando na menina do Seu olho (veja Zc 2.8).
(Friedrich Hilliges)
Extraído de Revista Chamada da Meia-Noite Fevereiro de 2016
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