Mesmo tendo boas intenções, é difícil evitar que façamos uma imagem de Jesus conforme a nossa própria imagem
Jesus: a chegada do reino de Deus
O cristianismo diz respeito a algo que aconteceu. Algo que aconteceu a
Jesus de Nazaré. Algo que aconteceu através de Jesus de Nazaré.
Em outras palavras, o cristianismo não diz respeito a um novo ensino
moral — embora estivéssemos moralmente perdidos e precisássemos de
orientações novas ou mais específicas. Não estamos negando que Jesus e
alguns de seus primeiros seguidores deixaram lições morais revigorantes e
racionais. Apenas insistimos que esse ensino moral faz parte de uma
estrutura maior — a história de algo que aconteceu e transformou o
mundo.
O
cristianismo não se restringe ao exemplo moral oferecido por Jesus,
como se nossa principal necessidade fosse observar uma vida de intenso
amor e devoção a Deus para que pudéssemos imitá-la. Se essa era a
principal intenção de Jesus, pode ter produzido algum efeito. A vida de
algumas pessoas tem realmente mudado simplesmente por observar e imitar o
exemplo de Jesus. Mas, por outro lado, poderíamos nos sentir
frustrados. Posso observar Richter tocar piano ou Tiger Woods jogar
golfe, mas isso não significa que eu possa imitá-los. Só me faz perceber
que não consigo e que jamais conseguirei.
O cristianismo também não é uma nova rota estabelecida por Jesus para
que as pessoas possam “ir para o céu quando morrerem”. Trata-se de um
equívoco baseado na noção medieval de que a finalidade principal de toda
religião seria simplesmente garantir que você vá para o céu, que quando
acabar a peça você ficará do lado certo na pintura da Capela Sistina
(isto é, no céu e não no inferno). Mais uma vez, não estamos negando que
as ações que praticamos em vida ou nossas crenças não tenham
consequências futuras. Porém, não era esse o propósito da obra de Jesus
nem é essa a “finalidade” do cristianismo.
Por último, o cristianismo não veio dar ao mundo um novo conceito de
Deus, embora, se a afirmação cristã for verdadeira, podemos aprender
muito sobre Deus olhando para Jesus. O ponto principal não é tanto o
fato de que somos ignorantes e precisamos de mais informação. A questão é
que estamos perdidos e precisamos de alguém que venha nos socorrer; é
como se estivéssemos afundando na areia movediça, esperando por alguém
que possa nos resgatar e nos dar uma nova vida.
Mas, afinal, do que trata o cristianismo?
O cristianismo fala do Deus vivo que, no cumprimento de suas
promessas e como clímax da história de Israel, nos encontrou, salvou e
nos deu nova vida em Jesus. Através de Jesus, a operação-resgate de Deus
foi colocada em prática de uma vez por todas. Uma grande porta se
abriu, e jamais poderá ser fechada. Trata-se da porta da prisão onde
vivíamos acorrentados. Porém, nos foi oferecida a liberdade: liberdade
de experimentar o resgate de Deus, de passar pela porta aberta e
explorar o novo mundo ao qual agora temos acesso. Todos nós fomos
especialmente convidados — ou melhor, convocados — a seguir Jesus e
descobrir que esse novo mundo é, na verdade um lugar de justiça,
espiritualidade, relacionamento e beleza. Não devemos apenas desfrutar
de todas essas coisas, mas trabalhar para que elas se tornem evidentes,
assim na terra como no céu. Quando ouvimos a voz de Jesus, descobrimos
que é essa voz que ecoa no coração e na mente de toda a raça humana.
Romances e ficção
No ultimo século, a quantidade de livros escritos sobre Jesus
apresentou um rápido crescimento. Isso pode ser explicado em parte pelo
fato de Jesus frequentar a memória e o imaginário da cultura ocidental
como poucas figuras do passado ou do presente. Nossa datação do tempo
ainda usa como referência a data provável do nascimento de Jesus. (Na
verdade, o monge do sexto século que fez o cálculo errou em alguns anos;
Jesus deve ter nascido no ano 4 antes de Cristo, o ano em que morreu
Herodes, o Grande). Em meu país [USA], mesmo aqueles que pouco ou nada
sabem sobre Jesus ainda usam seu nome como garantia em um juramento,
numa espécie de reconhecimento indireto ao seu impacto cultural.
Na América, afirmações levianas a respeito de Jesus ainda produzem
manchetes de jornais: talvez ele não fosse nada daquilo que consta nos
evangelhos; talvez ele fosse casado, talvez não pensasse ser o Filho de
Deus, e assim por diante. Alguns autores têm escrito romances e obras de
ficção histórica com enredos fantasiosos a respeito de Jesus, como O
Código Da Vinci, de Dan Brown, que insiste (entre outras coisas) que
Jesus era casado com Maria Madalena e tinha um filho. O extraordinário
sucesso desse livro não pode ser explicado simplesmente por ser um
thriller inteligente e bem escrito. Há muitos outros como ele. A
possibilidade de descobrir algo novo sobre Jesus, algo que passou
despercebido à nossa cultura desperta nas pessoas um sentimento de novas
possibilidades e perspectivas.
Isso acontece, em parte, porque como qualquer outro personagem
histórico, Jesus está sujeito a diferentes interpretações. As pessoas
escrevem biografias revisadas de Winston Churchill, do qual há muitas
evidências, ou de Alexandre, o Grande, do qual há bem menos. Na verdade,
quanto maior o número de evidências, mais há para ser interpretado;
quanto menor, mais suposições são levantadas, a fim de preencher as
lacunas. Assim, tanto em relação a um personagem recente, do qual há
muita informação, quanto a um personagem antigo, do qual não há quase
nada, há sempre trabalho de sobra para o historiador.
Jesus, na verdade, tem um pouco de cada. É claro que temos muito
menos material a seu respeito do que temos, por exemplo, de Churchill ou
J. F. Kennedy. Mas sabemos bem mais sobre Jesus do que sobre muitos
personagens do mundo antigo, como Tibério, o imperador romano na época
da morte de Jesus, ou Herodes Antipas, o governador judeu no mesmo
período. Na verdade, temos tantas frases atribuídas a Jesus e tantos
relatos de suas ações que podemos escolher apenas alguns deles para
usarmos de forma sucinta neste capítulo e no próximo. Ao mesmo tempo, no
entanto, há brechas incômodas, não apenas em grande parte de sua
infância e adolescência, como também em algumas coisas que um biógrafo
contemporâneo gostaria de saber. Ninguém fala nada sobre sua aparência
física, ou o que ele tomava no café da manhã. Ninguém, o que é mais
importante, nos diz como ele lia as Escrituras, ou — exceto em rápidas
menções — como ele orava. O segredo, portanto, é procurar entender o
mundo de Jesus, o mundo complicado e perigoso do Oriente Médio no
primeiro século, de modo a fazer com que suas palavras e suas ações
adquiram um sentido histórico, pessoal e teológico.
O lugar do encontro entre a dimensão de Deus e a nossa
Mas, como já dissemos, há algo mais, algo que torna a tentativa de
compreender Jesus muito mais complexa e contestada do que qualquer outro
personagem na história antiga ou moderna. Os cristãos têm afirmado
desde o início que apesar de Jesus não mais andar pela Palestina, onde
qualquer um poderia encontrá-lo e conhecê-lo, ele está de fato “conosco”
em sentido diferente, e podemos conhecê-lo de uma maneira não
completamente diferente do modo como conhecemos outras pessoas.
Isso acontece porque o elemento essencial para a experiência cristã,
não meramente para o dogma cristão, está no fato de que em Jesus de
Nazaré o céu e a terra se uniram para sempre. O lugar do encontro entre a
dimensão de Deus e a nossa não é mais o Templo de Jerusalém. É o
próprio Jesus. A mesma cosmologia que fez sentido em relação à afirmação
sobre o Templo faz sentido também em relação a essa afirmação. Não
podemos esquecer que “céu”, no pensamento judaico-cristão não é um lugar
quilômetros acima do firmamento, mas é, por assim dizer, a dimensão de
Deus em relação ao cosmos. Assim, embora os cristãos creiam que Jesus
está agora “no céu”, ele está também no nosso mundo, acessível e ativo.
Para qualquer um que crê nisso e tenta viver por isso, escrever a
história de Jesus é muito mais complicado que simplesmente documentar a
vida de um personagem do passado. É mais como escrever a biografia de um
amigo que ainda está bem vivo e que ainda pode nos surpreender.
Não seria mais simples, então, dizer que deveríamos abandonar a
tentativa de escrever sobre Jesus como personagem histórico e passar a
escrever a partir de nossa experiência com Jesus? Atualmente, há muitas
pessoas que defendem essa posição vigorosamente, não só por estarem
fartos das tolices escritas por estudiosos e autores populares. Mas eu
não farei isso. Já é bastante difícil, mesmo tendo boas intenções,
evitar que façamos uma imagem de Jesus conforme a nossa própria imagem.
Quando deixamos de lado a história, perdemos o freio e o retrato passa a
ser uma ilusão.
• Trecho retirado do livro Simplesmente Cristão, de N. T. Wright (Editora Ultimato)
• Trecho retirado do livro Simplesmente Cristão, de N. T. Wright (Editora Ultimato)
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