Que
relação há entre dons espirituais e talentos naturais? Algumas poucas
pessoas responderão imediatamente: “Nenhuma”, outras têm falado e
escrito como se não houvesse diferença digna de nota entre eles.
Parece-me que estas duas posições são extremadas. Deve haver alguma
diferença, na verdade uma diferença clara, porque o Deus da criação, por
um lado, em sua providência, dá talentos a todos os homens e mulheres
(tanto que falamos que algumas pessoas têm um “dom” artístico ou um
“dom” para a música, ou têm uma personalidade muito “dotada”) e, por
outro, o Deus da nova criação, a Igreja, confere “dons espirituais”
somente às pessoas redimidas. São os dons espirituais que diferenciam os
membros do Corpo de Cristo, pois cada membro do Corpo tem um dom ou
função. Mesmo assim, devemos ter cautela em deduzir disto que não há
nenhum vinculo entre dons e talentos. Diversas razões devem levar-nos a
pensar assim.
A primeira é que o mesmo Deus é o Deus
da criação e da nova criação, e ele opera sua vontade perfeita através
das duas. Esta vontade divina é eterna. Deus disse a Jeremias, por
ocasião do seu chamado ao ofício profético: “Antes que eu te formasse no
ventre materno, eu te conheci, e antes que saísses da madre, te
consagrei e te constituí profeta às nações” (Jr 1:5). Paulo tinha a
mesma convicção a respeito de si e de seu chamado para ser apóstolo. O
Deus que lhe revelou seu Filho foi o mesmo que “me separou antes de eu
nascer e me chamou pela sua graça” (Gl 1:15). Observe que os dois
versículos contêm mais que uma referência ao tempo, isto é, antes do
nascimento de Jeremias e Paulo, Deus sabe o que lhes aconteceria.
Afirma-se que já artes de eles nascerem Deus os tinha consagrado ou
separado para o ministério especial para o qual ele haveria de chamá-los
depois. É certo, então, que não podemos dizer que não havia uma ligação
entre as duas partes da sua vida.
Será que não combina melhor com o Deus
da Bíblia concluir que ele os capacitou antes de chamá-los (um
condicionamento genético, diríamos modernamente), o que se manifestou e
pôde ser usado somente depois? Deus esteve ativo nas duas partes da sua
vida, e combinou ambas de maneira perfeita. De modo semelhante todos os
escritores bíblicos foram preparados antes pela providência de Deus em
termos de temperamento, educação e experiência, para depois serem
inspirados pelo Espírito Santo para comunicar uma mensagem totalmente
adequada ao tipo de pessoa que eram.
Se alguém objetar que o que valeu para
profetas e apóstolos mão vale necessariamente para os cristãos comuns de
hoje, eu responderia que a Bíblia sugere o oposto. O plano gracioso de
Deus para cada um de nós é eterno. Ele foi imaginado e até “dado em
Cristo Jesus antes dos tempos eternos” (2 Tm 1:9); Deus nos escolheu
para que fôssemos santos e nos destinou para que fôssemos seus filhos
através de Jesus Cristo “antes da fundação do mundo” (Ef 1:4,5); e as
boas obras para as quais fornos recriados em Cristo são exatamente
aquelas que “Deus de antemão preparou ” (Ef 2:10). Esta verdade
fundamental de que Deus planejou o fim desde o começo, deve advertir-nos
contra concluir com muita rapidez em favor de uma descontinuidade entre
natureza e graça, entre nossa vida pré e pós-conversão.
Há uma outra razão para crermos em um
vínculo entre dons naturais e espirituais. Diversos charismata, além de
não serem milagrosos, são claramente mundanos. São dons espirituais de
natureza material. Talvez os exemplos mais claros sejam os três últimos
da lista de Paulo em Romanos 12:
“… o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria.” (Rm 12:8).
Não pode haver dúvida de que estes três
fazem parte da lista de charismata. A própria palavra consta do início
do versículo 6. A lista toda faz parte da metáfora “um corpo – muitos
membros” (vv. 4, 5), como em 1 Coríntios 12. Todos os sete dons da lista
de Romanos 12 são apresentados de uma maneira quase idêntica.
Então, do que falam estes três dons? O
intermediário dos três é ambíguo no grego, podendo significar tanto
“aquele que ajuda” como “que tem autoridade” (BLH) ou “quem lidera”;
neste sentido é usado para os líderes da igreja e presbíteros em 1 Ts
5:12 e 1 Tm 5:17. Quanto aos outros dois dons não há dúvidas. Um (“o que
contribui”) se refere a dar dinheiro, e é usado especificamente em Ef
4:28 para expressar a doação “ao necessitado”; o outro é “quem exerce
misericórdia”. Acontece que descrentes podem, igualmente, dar dinheiro a
pessoas necessitadas e exercer misericórdia, e o fazem.
Então, em que sentido as duas atitudes
podem ser consideradas “dons espirituais” concedidos por Deus
exclusivamente aos seus filhos? É, no mínimo, improvável que o primeiro
destes dons seja uma chuva de dinheiro repentina, depois da conversão!
Pelo contrário, creio que devermos concordar que os recursos (o dinheiro
para dar, a força para servir) já estavam nestas pessoas antes de sua
conversão. O que é novo, que transforma sua capacidade natural em um dom
espiritual, deve estar na área do seu objetivo (as causas que eles
servem e para que dão) e da sua motivação (os incentivos que os
orientam). Pelo menos é nisto que Paulo põe a ênfase. Ele diz que não
deve haver uma atitude indisposta e relutante. Quem dá dinheiro deve
exercer seu dom “com liberalidade” (“generosidade”, BLH), e quem exerce
misericórdia, “com alegria”.
Um vínculo semelhante entre talentos
naturais existentes antes da conversão e dons espirituais presentes após
a conversão, pode existir também entre dois dos charismata anteriores
que Paulo menciona em Romanos 12, que são “o que ensina” (v. 7) e “o que
exorta” (v. 8). É óbvio o que significa “ensinar”. O verbo exortar
(parakaleo), por sua vez, tem diversos significados, que vão desde
“pedir” e “suplicar” até “incentivar”, “confortar” e “consolar”. Os dois
verbos podem estar se referindo a diferentes aspectos do ministério
público da palavra, de um lado a instrução e de outro a exortação.
A “exortação” (paraklesis) pode,
certamente, ser dada em discurso formal (At 13:15), ou por escrito (Hb
13:22). Mesmo assim, paraklesis é um conceito mais amplo que inclui o
tipo de incentivo e conforto que a amizade, interesse e amor pessoal
podem dar. Acontece que tanto a instrução como incentivo podem ser dados
por pessoas não-cristãs. No mundo secular encontramos muitas pessoas
que são (como dizemos) “professores natos”, e outras cujo grande dom é
sua compreensão, disponibilidade, sensibilidade, em resultado do que
elas reanimam as pessoas e as incentivam em seu caminho. Então, qual
pode ser a diferença entre professores e conselheiros não-cristãos, por
um lado e cristãos com estes dons espirituais, por outro?
Em vista do que foi escrito acima sobre o
Deus da natureza e da graça, a priori não é improvável que Deus dê o
dom espiritual do ensino a um crente que, antes de converter-se, não
conseguia comunicar-se, ou o dom espiritual do aconselhamento a um Irmão
ou irmã que é antipático ou rude por temperamento? Isto não seria
impossível para Deus. Mas não estaria mais em harmonia com o Deus da
Bíblia, cujos planos são eternos, supor que seus dons espirituais andam
lado a lado com seus talentos naturais? E que, por exemplo, um “filho de
exortação” como Barnabé (At 4:36), que exerceu seu ministério pessoal
dando generosamente (v. 37) e sendo amigo pessoal (por ex., At 9:26, 27,
11:25,26), já era este tipo de pessoa, pelo menos em potencial, quando
Deus o fez?
Neste caso devemos procurar as
peculiaridades dos dons espirituais de ensino e aconselhamento na
elevação, na intensificação, na “cristianização” de um talento natural
latente, ou já presente. Por esta razão, uma pessoa pode ser um
professor dotado antes de sua conversão, e depois de receber o charisma
do ensino que o capacita a expor com entendimento, clareza e relevância.
Ou alguém pode ter por natureza uma maior facilidade de se relacionar
amigavelmente com pessoas, mas depois da conversão recebe o dom
espiritual da “exortação”, que o capacita a exercer um ministério
cristão específico de “exortação em Cristo” (Fp 2:1), que inclui a
instrução cristã (p. ex., 1 Ts 4:18; Tt 1:9.) e o calor e a força da fé
cristã (Rm 1:12). Em todas estas últimas referências ocorrem as palavras
parakaleo ou paraklesis.
Portanto, a evidência bíblica nos
adverte a não traçarmos uma linha demarcatória muito firme entre dons
naturais e espirituais. John Owen, em seu grande livro do século XVII,
Pneumatologia ou A Discourse Concerning the Holy Spirit (Uma
Dissertação Sobre o Espírito Santo), distinguiu entre dois tipos de dons
espirituais – “os que excedem todos os poderes e capacidades da mente
humana” e “os que consistem de reforços extraordinários das capacidades
da mente humana”.
Autor: John Stott
Trecho extraído do livro Batismo e Plenitude do Espírito Santo. Editora: Vida Nova
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