Dentre os rituais prescritos na
lei mosaica, nenhum era mais radical do que a circuncisão. Trata-se de um
procedimento cirúrgico no qual se remove o prepúcio, a pele que recobre a
glande do órgão reprodutor masculino, tão invasivo e traumático quanto o corte
do cordão umbilical. Diferentemente de outras cerimônias como as que exigiam o
sacrifício de animais, a circuncisão deixava uma marca no corpo do indivíduo.
Na verdade, a circuncisão foi
instituída bem antes da lei, servindo de selo da aliança entre Deus e os
descendentes de Abraão. Todo filho varão deveria ser circuncidado ao oitavo dia
(G.17:10-12). O próprio Jesus precisou ser submetido ao rito.
Atualmente, muitos defendem a
circuncisão como uma medida de higiene, útil para impedir o acúmulo de secreção
genital no espaço entre a glande e o prepúcio, região comumente foco de
infecções. Pesquisas apontam os benefícios práticos da circuncisão como a
redução de infecções urinárias, câncer peniano e câncer do colo do útero nas
parceiras, doenças sexualmente transmissíveis, dentre as quais o HIV. Apesar do
valor atribuído pela medicina moderna à prática, gostaria de propor uma
investigação bíblica em busca de seu sentido simbólico/espiritual.
O escritor sagrado diz que os
ritos e cerimônias da lei têm “a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata
das coisas” (Hb.10:1). Paulo complementa dizendo que a realidade para a qual
eles apontam se encontra “em Cristo” (Col.2:16-17). Portanto, muito mais do que
uma medida higiênica e preventiva, a circuncisão encerra em si um significado
mais amplo e profundo.
Bem da verdade, a circuncisão
acabou se tornando motivo de muita controvérsia na igreja primitiva. Alguns
discípulos judeus achavam que qualquer gentio que se convertesse à fé deveria
se submeter ao rito. Somente assim, o novo convertido seria aceito na
comunidade dos cristãos, sendo oficialmente incluído entre os descendentes de
Abraão.
Paulo foi um dos que mais
combateram tal crença. Segundo o apóstolo, o que antes era um sinal da aliança
entre Deus e Abraão, agora se tornara numa ferramenta para manter as pessoas
reféns de uma religiosidade frívola e vã.
“Tendo cuidado”, advertiu Paulo,
“para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas,
segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo
Cristo; porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade, e
tendes a vossa plenitude nele, que é a cabeça de todo principado e potestade,
no qual também fostes circuncidados com a circuncisão não feita por mãos no
despojar do corpo da carne, a saber, a circuncisão de Cristo” (Col.2:8-11).
Portanto, a circuncisão
instituída na lei era apenas uma sombra da verdadeira circuncisão à qual somos
submetidos em Cristo. N’Ele
alcançamos a plenitude; em outras palavras, não nos falta nada. Estamos
completos. Sua graça nos basta. Não há acréscimos a fazer.
Alguns discípulos mais moderados
achavam que a circuncisão deveria ser encarada como algo opcional. Quem
quisesse, poderia ser circuncidado. Quem não quisesse, poderia manter-se
incircunciso. Porém, Paulo, prevendo que isso promoveria a divisão dos cristãos
em duas classes distintas, opôs-se radicalmente. “Se vos deixardes
circuncidar”, alerta o apóstolo, “Cristo de nada vos aproveitará” (Gl.5:2). E a
lógica que ele usava era imbatível: “E de novo protesto a todo o homem que se
deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (v.3). Não dava para
transigir. Quem quisesse viver sob a égide da lei, teria que observá-la por
completo. Ou tudo, ou nada. Ou se vive pela lei, ou se rende à graça. E ele
mesmo sentencia: “Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela
lei; da graça tendes caído” (v.4).
Para Paulo, aquela era uma
questão há muito superada. Transformá-la num cavalo de batalha era total perda
de tempo. Por isso, ele se nega a pôr panos quentes. O assunto tinha que se
encerrar ali mesmo. “Porque”, afinal, “em Jesus Cristo nem a
circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé que opera pelo
amor” (v.6). E arremata: “Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão, nem a
incircuncisão tem virtude alguma, mas sim o ser uma nova criatura” (Gl.6:15).
Nem valor, nem virtude. Portanto, ninguém pode se gabar perante Deus pelo
simples fato de ter sido circuncidado conforme prescrito na lei.
Em quase todas as suas epístolas,
Paulo teve que retomar a questão, mesmo que a contragosto. A igreja sofria um
ininterrupto assédio dos que defendiam a circuncisão como condição sine qua non
para a salvação. Aos Filipenses, ele defende que a verdadeira circuncisão
“somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não
confiamos na carne”(Fp.3:3). Ao contrário da lei que servira como plataforma de
um sistema meritório, a graça derruba qualquer presunção humana, posto que
revele nossa falência espiritual, a fraqueza de nossa carne e a nossa
inabilidade em cumprir as demandas da justiça divina. Não dá para confiar em
Cristo e confiar em nossa carne ao mesmo tempo. Qualquer tentativa de se
estabelecer uma meritocracia sucumbe ante a radicalidade da graça.
Aos cristãos de Roma, ele
alfineta:
“Porque não é judeu o que o é
exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne. Mas é judeu
o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na
letra; cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus.” Romanos 2:28,29
Circuncisão do coração? De onde
Paulo teria tirado este conceito? Seria um conceito totalmente novo? Haveria
algum indício no Antigo Testamento de que sob a nova aliança a circuncisão da
carne seria substituída pela circuncisão do coração? E o que significaria tal
circuncisão?
Jeremias, o mais emotivo dentre
os profetas, admoesta:
“Circuncidai-vos ao Senhor, e
tirai os prepúcios do vosso coração, ó homens de Judá e habitantes de
Jerusalém, para que o meu furor não venha a sair como fogo, e arda de modo que
não haja quem o apague, por causa da malícia das vossas obras.” Jeremias 4:4
Esta passagem
vetero-testamentária deixa claro que a não circuncisão de nosso coração
atrairia o juízo de Deus. Fica igualmente subentendido que nossas más obras
nada mais são do que frutos de um coração incircunciso.
Mesmo durante a instituição da
lei, muito antes da Era dos grandes profetas, Deus já havia Se comprometido a
promover a circuncisão do coração do Seu povo. Portanto, não se trata de obra
humana, mas divina. Leia o que diz Moisés sobre isso:
“E o Senhor teu Deus circuncidará
o teu coração, e o coração de tua descendência, para amares ao Senhor teu Deus
com todo o coração, e com toda a tua alma, para que vivas.” Deuteronômio 30:6
Repare nisso: a circuncisão do
coração é que nos possibilita a amar a Deus. Jesus disse que toda a lei foi
resumida em dois mandamentos: Amar a Deus e amar ao próximo. Sem que o homem
tenha seu coração circuncidado, ele jamais será capaz de cumpri-los. O
cumprimento de ambos depende totalmente desta operação feita pelo Espírito
Santo em nosso interior. E uma vez que sejamos incapazes de amar ao nosso
semelhante, certamente lhe negaremos também a justiça.
“Circuncidai, pois, o prepúcio do
vosso coração, e não mais endureçais a vossa cerviz. Pois o Senhor vosso Deus é
o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível,
que não faz acepção de pessoas, nem aceita subornos; que faz justiça ao órfão e
à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa.” Deuteronômio 10:16-18
A paz só é possível se houver
justiça, e esta, por sua vez, só se cumpre onde haja amor. Todavia, há um
prepúcio no coração de todo homem que o impede de ver isso. Paulo também se
refere a esta cobertura como um véu capaz de endurecer o entendimento humano.
Daí a advertência para que não endurecemos a nossa cerviz. Em outras palavras,
temos que deixar de ser cabeça dura. Porém, para isso, o véu tem que ser
removido. E isso só ocorre quando somos convertidos a Cristo (2 Co.3:13-18).
Portanto, a genuína conversão equivale a ter o coração circuncidado.
Permita-me lançar mão de uma
compreensão psicanalítica de nossa condição humana que parece ecoar a verdade
anunciada nas Escrituras.
De acordo com Freud, todos
nascemos narcisistas. Ao nascermos, todo o nosso amor é voltado para nós
mesmos. Até a nossa mãe é vista como sendo uma extensão de nosso ser. Isso
parece se encaixar perfeitamente com o que a teologia cristã diz acerca de
nossa condição humana: todos nascemos em pecado (Sl.51:5). Pecado é, por
definição, errar o alvo. Não fomos criados para o amor próprio, mas para amar a
Deus e ao nosso semelhante. O amor próprio é, por assim dizer, a essência do
pecado. Nascemos em pecado porque nascemos voltados para nós mesmos. Investimos
todo o nosso afeto em nosso eu. O outro não passa de um espelho onde
vislumbramos nossa imagem. É pelo outro que tomamos consciência de que
existimos. O mundo parece nos orbitar. Até que ocorre um trauma de tal ordem que
Freud chama de castração. Se o narcisismo é a entronização do “eu”, a castração
é a sua deposição. Somos confrontados pela lei imposta pelo superego num
processo chamado de Complexo de Édipo, através do qual descobrimos que nem
todos os nossos desejos podem ser saciados. O papel do superego é nos munir de
consciência moral, ditando-nos o bem a ser buscado, e o mal a ser evitado. É
através da castração que a lei é cravada em nossa consciência, gerando uma
estrutura psíquica neurótica, fundamentada no desejo e na culpa. Uma eventual
falha na castração gerará uma estrutura psíquica psicótica, ou mesmo perversa,
em que o sujeito é incapaz de se sentir culpado. Sem que haja culpa, também não
haverá arrependimento. É necessário que a lei cumpra seu papel, a fim de que a
graça entre em cena, de modo que se cumpra a célebre declaração apostólica:
“Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm.5:20). Como cristão que crê
no ministério do Espírito em convencer o homem acerca do pecado, da justiça e
do juízo (Jo.16:8), creio firmemente que ninguém está imune à Sua eficiente
atuação, nem mesmo o psicótico ou o perverso. Porém, esta atuação passa
necessariamente pela admissão de culpa, sem a qual, jamais se alcançará a
consciência grata pelo perdão. Sem a lei, não há evangelho possível. A lei
condena para que o evangelho absolva.
Engana-se quem pensa que a lei
foi legada exclusivamente aos judeus. Paulo afirma que mesmo os gentios “fazem
naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei;
os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando
juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer
defendendo-os” (Rm.2:14,15). Esta tal lei no coração é o que Freud chama de
superego.
É justamente a castração que nos
lança para fora de nós mesmos e nos faz buscar no outro o que não encontramos
em nós, posto que revele nossa desesperadora condição de incompletude.
Agora temos um ego suprimido pelo
superego e uma terceira instância psíquica a que Freud chama de Id, que
equivale ao que Paulo chama de “carne”. Digamos que o superego seja aquele
anjinho que nos estimular a fazer o que é certo, enquanto que o Id é o diabinho
que nos instiga a fazer o que é errado. Caberá ao ego arbitrar entre as
demandas do superego e do Id.
Devido à nossa condição
pecaminosa, somos bem mais propensos a atender aos apelos do Id do que aos
estímulos do superego. Queremos saciar os desejos de nossa carne a qualquer
custo, mesmo que isso resulte na infelicidade de outros. Diferente das estrelas
ao redor das quais orbitam os mais variados planetas, tornamo-nos buracos
negros que sugam tudo ao seu redor.
A castração não foi suficiente
para nos tornar seres humanos plenos. Quando muito, devemos a ela nossa
introdução à adolescência espiritual. A plenitude de que tanto carecemos se
encontra na graça revelada em
Cristo. Ela nos liberta da opressão do superego e da contínua
pressão do Id.
A circuncisão do coração nos
oferece um estágio para além da castração. Tanto o ego, quanto o superego são
destituídos e em seu lugar entronizamos respectivamente a Cristo e ao Espírito
Santo. "Estou crucificado com Cristo", declara Paulo, "e já não
vivo eu, mas Cristo vive em mim" (Gl.2:20). O eixo ao redor do qual gira
nossa existência deixa de ser nosso eu para ser Cristo, e a voz da nossa
consciência deixa de ser a voz inquisitiva da lei para ser a doce e
encorajadora voz do Espírito Santo. Somente o Id segue ocupando o mesmo lugar,
posto que a carne jamais se converte. Somente nos livramos das pulsões de nossa
natureza pecaminosa quando recebermos novos corpos e Deus for tudo em todos (1
Co.15:28; Fp.3:21).
Mediante a castração, fomos
levados à Árvore do Conhecimento do Bem do Mal, mas somente pela circuncisão do
coração somos reconduzidos à Árvore da Vida.
A partir daí, em vez de enxergar
nossa própria imagem (narcisismo), passamos a enxergar em nós mesmos a imagem
de Cristo e a flagrante transformação patrocinada pelo Espírito da Liberdade (2
Co.3:18). Finalmente, com o coração circuncidado, deixamos de viver para nós
mesmos. Como declara Paulo, “o amor de Cristo nos constrange, julgando nós
assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por
todos, para que os que vivem não vivam mais para si” (2 Co.5:14-15). Este santo
constrangimento não apenas afeta a maneira como enxergamos a nós mesmos, mas
também a maneira como enxergamos o outro. Paulo complementa: “Assim que daqui
por diante a ninguém conhecemos segundo a carne” (v.16). Em outras palavras, já
não buscamos no outro nossa própria satisfação. O outro deixa de ser um mero
item de nosso desejo, um sonho de consumo, e passa a ser visto e acolhido como
alguém a quem devemos devotar despretensiosamente nosso amor. Pela graça
tornamo-nos livres para amar tanto a Deus quanto a nosso próximo; não
impulsionados pela culpa neurótica gerada pela lei (superego), mas pelo
Espírito de Cristo; não pelo medo de sermos inadequados às expectativas dos
outros, mas pelo prazer de encontrar na felicidade alheia a razão de nossa
própria felicidade.
Pode-se dizer, então, que o ser
concebido no ambiente uterino só alcançará a plenitude de sua humanidade ao ser
regenerado, passando pela circuncisão de seu coração.
Hermes C. Fernandes
FONTE:
http://oleirosdorei.blogspot.com.br/2015/05/a-circuncisao-do-coracao.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário