O dia 31 de outubro é, oficialmente, a data em que os evangélicos comemoram a Reforma Protestante (na cidade de Boa Viagem - CE, há inclusive uma lei municipal decretando feriado). Foi, no referido dia e mês de 1517, que Lutero afixou as 95 teses em frente a um templo católico que ficava nos arredores do castelo de Wittenberg, na Alemanha.
Vale relembrar que o referido segmento religioso (protestantismo)
acredita, piamente, que Lutero, Calvino (e outros) estavam cheios do
Espírito Santo ao introduzirem a Reforma, de sorte que a terceira pessoa
da Trindade teria direcionado e capacitado os ditos reformadores para
tal finalidade - que estaria dentro da própria vontade de Deus. Ou seja,
enquanto historiadores tentam enxergar o evento como o resultado de um
processo histórico - à luz de interesses humanos, religiosos ou não -,
há quem pretenda tenha sido a Reforma um projeto divino para a
humanidade.
Iremos, agora, prolongar o tema, em cuja oportunidade exporemos novos
dados; e começaremos falando de Calvino, um dos mais notórios nomes do
protestantismo.
Até hoje corre a má fama do reformador pelo fato dele ter tido
participação direta na condenação do médico Miguel Servet (1511-1553),
que não escondia sua descrença em relação à Trindade e à predestinação
(conceito teológico no qual se afirma convictamente que Deus seleciona,
sem critérios objetivos, as pessoas que irão se salvar e as que serão
condenadas ao fogo eterno).
Calvino, assim como santo Agostinho, não tinha a menor dúvida de que a
predestinação era algo divino, e não estava disposto a aceitar opiniões
divergentes.
O reformador e o médico trocaram várias correspondências teológicas, até
que Calvino desistiu de debater com seu oponente: estava certo de que
Servet se encontrava totalmente sob forte heretismo.
Miguel de Servet passou a ser alvo de católicos e protestantes. Fugindo
da Inquisição da Igreja Católica na França, foi parar em Genebra
(Suíça), onde Calvino presidia o Conselho de Genebra – que tinha por
função, dentre outras, a de julgar casos de heresia. Os protestantes não
foram menos tolerantes que os rivais católicos: Servet foi julgado à
fogueira, embora conste que Calvino opinou no sentido de que o condenado
fosse morto por decapitação. Vale destacar ainda que Calvino consultou
outros reformadores, inclusive Lutero, e todos concordaram com a
condenação de Servet à morte.
Onde estava o Espírito Santo que agia em Calvino e nos demais
reformadores? Por que o mesmo Espírito não convenceu o reformador a agir
segundo os ditames neotestamentários, cuja inspiração é, segundo se
crê, do próprio Espírito Santo? Em vez de defender a condenação por
decapitação, Calvino deveria ter dito: “Não podemos julgar esse homem só
pelo fato dele pensar diferente de nós”. O certo é que ele agiu
exatamente como agiram aqueles a quem tanto o protestantismo tem
condenado: o catolicismo histórico, a Inquisição. E onde fica o Espírito
Santo nessa história?
A intolerância religiosa de Calvino parecia ir ao extremo: expulsou de
Genebra um franciscano que mendigava nas ruas, pedindo comida em nome de
Deus e da Virgem Maria. O reformador autorizava invasões aos lares, com
o fim de investigar os costumes dos moradores. Foi imposta uma
verdadeira ditadura moral: vários foram os casos de mulheres punidas por
“má conduta”. Livros foram proibidos e a moda duramente vigiada.
Pode-se dizer, seguramente, que as atitudes acima mencionadas em nada
devem à histórica intolerância católica, a quem o protestantismo imprime
pesadas críticas, uma das quais de agirem sob possessão demoníaca.
Só as informações acima seriam suficientes para um sério questionamento:
como entender a Reforma como um ato que vem diretamente de Deus? Como
compreender o fato de que Calvino era um homem cheio do Espírito Santo
quando agiu em tais situações?
Muitos apologistas têm sustentado que Calvino agiu de acordo com o senso
e o costume da época. Tal defesa traz implicações mais sérias ainda: (1) Deus não é atemporal?; (2) tais métodos têm a aprovação neotestamentária?; (3) o Espírito Santo produziria um comportamento e conduziria o agente a métodos totalmente alheios à essência da mensagem de Deus?
Uma simples leitura dos Evangelhos revelará que não é assim que devem
ser tratadas as pessoas que têm crenças e opiniões divergentes do
cristão, daí o porquê de se acreditar que não se pode falar em atuação
do Espírito Santo no cerne da Reforma, visto que as relações públicas de
seus protagonistas são inseparáveis da crença proferida pelos mesmos.
Para finalizarmos sobre Calvino, leiamos este texto, de autoria do próprio reformador:
“Quem sustenta que é errado punir hereges e blasfemadores, pois nos
tornamos cúmplices de seus crimes (…). Não se trata aqui da autoridade
do homem, é Deus que fala (…). Portanto se Ele exigir de nós algo de tão
extrema gravidade, para que mostremos que lhe pagamos a honra devida,
estabelecendo o seu serviço acima de toda consideração humana, que não
poupamos parentes, nem de qualquer sangue, e esquecemos toda a
humanidade, quando o assunto é o combate pela Sua glória”.
Não restam dúvidas de que, mesmo agindo em desacordo com a razão e com
os preceitos bíblicos para o caso em questão, Calvino crê piamente que
está dentro da vontade de Deus, de modo que a condenação de quaisquer
eventuais hereges é, segundo sua consciência, um dever, uma obrigação,
uma tarefa sacra... quase um sacramento. Por acaso não foi a mesma
justificativa dada pela Inquisição durante séculos de história? Como
separar o trigo do joio? Como achar que a Reforma foi um ofício divino,
se a Contrarreforma pensou e atuou semelhantemente neste aspecto?
Lutero, por sua vez, como já assinalamos outrora, foi um homem de seu
tempo. Avocou o braço quando julgou necessário. Justificou o massacre
dos camponeses, e sua consciência não o reprovou.
Teologicamente falando, Lutero afirmou que o Cânon não está fechado
(ideia esta duramente rebatida pelos protestantes), e se insurgiu
veementemente contra um dos livros bíblicos (no caso, a epístola de
Tiago).
Reside, aqui, a mais aparente contradição nos discursos de quem advoga a
direta e constante participação divina na vida do reformador: se foi o
Espírito Santo quem colocou tal livro no Cânon sagrado (e portanto, de
inspiração divina), como o mesmo Espírito, em Lutero, agora diz que o
mesmo livro é de autoridade duvidosa? Não é espantoso e
autocontraditório?
Nunca é demais relembrar que, nas 95 teses de Lutero, não se percebe a
intenção do reformador em se desmembrar da Igreja Católica. Para ele, o
papa deveria continuar sendo o papa; o Purgatório seria uma realidade.
Tais fatos contrastam frontalmente com o espírito protestante; logo, é
realmente muito difícil conciliar as duas realidades.
Afirmar que a atuação do Espírito Santo na vida de Lutero foi gradativa,
implica o surgimento de discrepâncias neste novo fato: ou Lutero agiu
sozinho (sem intervenção divina) quando formulou as teses, ou quem o
inspirou sobrenaturalmente tinha em mente que as verdades católicas ali
formuladas têm autoridade divina. Seja qual for a opção escolhida, fica
evidente a falta de possibilidade de uma conciliação com o pensamento
protestante vigente, o que termina por comprometer a ideia de que a
Reforma é fruto direto da vontade de Deus.
Concluímos esta postagem afirmando que ainda há muito o que explorar.
Muito mesmo! Ao historiador certamente não interessa demasiadamente se
houve inspiração divina ou não, embora é incontestável que a motivação
religiosa é um fato presente na Reforma e Contrarreforma. Fica, por fim,
o registro de que qualquer especulação acerca de eventual atuação
sobrenatural na Reforma é matéria de fé, o que nos força a respeitar
quem assim o faz, visto tratar-se de elementos meramente subjetivos, e,
embora estranhos à confirmação científica, estão constitucionalmente
assegurados.
Leia, na íntegra, as 95 teses. Acesse:
http://historiaesuascuriosidades.blogspot.com/2011/11/as-95-teses-de-lutero-na-integra.html . Para ler sobre o que falamos de Lutero, acesse:
http://historiaesuascuriosidades.blogspot.com/2011/11/as-95-teses-de-lutero-na-integra.html . Para ler sobre o que falamos de Lutero, acesse:
FONTE:
http://historiaesuascuriosidades.blogspot.com.br/2011/10/494-anos-apos-reforma-protestante-fica.html
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