por Michael
Horton
Os rótulos geralmente são
confusos, especialmente quando o conteúdo da embalagem
muda. Suco de uva pode virar vinagre com o passar dos anos na
adega, porém o rótulo não muda junto com
as mudanças na substância. O mesmo vale para o termo
evangélico".
Desde o "Ano do Evangélico",
correspondente ao bicentenário de nossa nação
(no caso os EUA) em 1976, o termo - pelo menos na América
do Norte - veio a identificar aqueles que salientam um
determinada marca da política, uma abordagem moralista
e frequentemente
legalista da vida, e certo tipo de imitação, "cafona" de
estilo de evangelismo. Para alguns o termo compreende o
emocionalismo que eles veem na televisão religiosa.
Para outros, hipocrisia e justiça própria.
E aí há as
memórias que muitos de nós, que fomos criados
como evangélicos, temos: ambientes familiares fortes
e cuidadosos; um senso de pertencer a um mesmo lugar, com
os amigos que gostam
de conversar das "coisas do Senhor".
Independente
do seu passado, é importante
entender o significado do termo "evangélico".
As
pessoas só começaram
a usar o rótulo no século XVI, designando aqueles
que abraçaram o Evangelho que havia - num sentido bem
real - sido recuperado pela Reforma Protestante naquele século. "Evangélico" vem
de "evangel", que é o termo grego para "evangelho".
Deste modo, os "evangélicos" eram luteranos
e calvinistas que queriam recuperar o evangel e proclamá-lo
dos altos dos telhados. Era uma designação empregada
para colocar os Protestantes num agudo contraste com os Católicos
Romanos e "seitas". Mas para entender por que estes
Protestantes pensavam que eram realmente aqueles que recuperaram
o verdadeiro e bíblico Evangelho, temos que entender
o que era aquele evangelho.
O "Evangel"
A Reforma era uma coleção
de "solas" - esta é a palavra latina para "somente".
Eles vibravam ao dizer "Sola Scriptura!",
significando, "Somente as Escrituras". A Bíblia
era a "única regra para fé e prática" (Westminster)
para os reformadores. Você vê que a igreja acreditava
que a Bíblia era totalmente inspirada e infalível,
mas a igreja era o único intérprete infalível
da Bíblia. Os Reformadores acreditavam que a Tradição
era importante e que os Cristãos não a deveriam
interpretar por eles mesmos, mas que todos os cristãos
sejam clérigos ou leigos, deveriam chegar a um comum entendimento
e interpretação das Escrituras juntos. A Bíblia
não deveria ser exclusivamente deixada aos "espertos",
mas isso nunca significou para os Reformadores que cada cristão
deveria presumir que ele ou ela pudessem chegar a interpretações
da Bíblia sem a orientação e assistência
da Igreja.
O principal ponto de "Sola
Scriptura" então, era este: Não
deveria ser permitido à Igreja fazer regras ou doutrinas
fora das Escrituras. Não existem novas revelações,
nem papas que ouvem diretamente a voz de Deus, e nada que a
Bíblia não apresente deveria ser ordenado aos
cristãos.
O segundo "sola" era "Solo
Christus", "Somente Cristo". Isto não
queria dizer que os Reformadores não criam na Trindade
- pois o Pai e o Espírito Santo eram igualmente divinos,
mas que Cristo, sendo o "Deus-Homem" e nosso único
Mediador, é o "Homem de frente" para a Trindade. "Aquele
que me vê a Mim, vê ao Pai que me enviou",
disse Jesus. Num tempo em que meros seres humanos estão
tomando o lugar de Cristo como Mediador entre Deus e cristãos,
os reformadores proclamaram juntamente com Paulo: "Há somente
um Deus e um Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo,
homem" (1 Tim. 2: 5). Eu cresci em igrejas onde tínhamos "apelos
ao altar" e esta pode ser a coisa mais próxima
que nós cristãos modernos temos do "chamado
ao altar" medieval, a missa. Em nossas igrejas, o pastor
atuaria como mediador, vendo nossa mão levantada "enquanto
cada cabeça está baixa e cada olho fechado",
e nós iríamos para a frente onde ele estava,
o chamado "altar" e repetiríamos uma oração
após ele. Então ele afirmaria que, tendo "feito
a oração", nós agora estaríamos
salvos. Eu me lembro de ter sido "salvo" novamente,
e novamente. Quando me senti culpado após uma particular
e desagradável noite de sábado, lá ia
eu novamente ao altar. Cristãos medievais estavam sempre
apavorados até a morte, por ver que poderiam morrer
com pecados não confessados e assim iriam para o inferno.
Assim, a missa era uma oportunidade de "estar em dia com
Deus" e de "encher a banheira" que tinha
tido um vazamento por causa do pecado.
Os
reformadores, porém, diriam àqueles
dentre nós que vivem ansiosos quanto ao fato de estar
ou não dentro do favor de Deus, ou se estamos cedendo
demais ou obtendo vitória: "Somente Cristo!" É a
Sua vida e não a nossa, que conta para a nossa salvação;
foi a Sua morte sacrificial e ressurreição vitoriosa
que nos assegurou vida eterna. Porque Ele "entregou tudo";
o Seu mérito cobre totalmente o nosso demérito.
E
isso nos traz ao próximo "sola" - "Sola
Gracia" (Somente a Graça!) Roma acreditava
na graça; de fato, a Igreja insistia que, sem a graça,
ninguém poderia ser salvo. Só que a graça
era o tipo de "um pó mágico" que ajudava
a pessoa a viver uma vida melhor - com a ajuda de Deus. Os
reformadores, em contrapartida, diziam que a graça não é uma
substância que Deus nos dá para vivermos uma vida
melhor, mas sim uma atitude em relação a nós,
aceitando-nos como justos por causa da santidade de Cristo,
e não nossa.
Por isso eles
lançaram o quarto "somente" (sola),
que sabemos ser "Sola Fide" (somente
a fé). Considerando que somos salvos somente pela graça,
como obtemos essa graça? Roma argumentava que essa graça
era distribuída pela igreja através dos vários
métodos que os "altos escalões" haviam
inventado. Fé mais amor, ou fé mais boas obras,
ou alguma coisa assim, tornou-se a fórmula para a salvação.
Os reformadores ao contrário, insistiam que do início
ao fim, "salvação é obra do Senhor" (João
2: 9). "O Espírito dá vida; o homem em nada
colabora" (João 6: 55). "Não depende
da decisão, nem do esforço do homem, mas da misericórdia
de Deus" (Rom 9: 16). Assim a fé em si mesma é um
dom da graça de Deus e não se pode dizer dela que
seja "a coisa" que nós fazemos na salvação:
Pois nós não somos nascidos da vontade da carne
ou da vontade do homem, mas de Deus" ( João 1:
13).
No minuto em que uma pessoa
olha para "Cristo
somente" para sua salvação, dependendo da
Sua vida santa e sacrifício substitutivo na cruz, naquele
exato momento ela ou ele é justificado (posto em posição
de justiça, declarado justo, santo, perfeito). A própria
santidade de Cristo é imputada (creditada) na conta do
crente, como se ele ou ela tivessem vivido uma vida perfeita
de obediência - mesmo enquanto aquela pessoa continua a
cair repetidamente no pecado durante sua vida. O Cristão
não é alguém que está olhando no
espelho espiritual, medindo a proximidade de Deus pela experiência
e progresso na santidade, mas é antes alguém que
está "olhando para Cristo, o Autor e Consumador da
nossa fé"( Heb. 12: 2). Resumindo, é o estilo
de vida de Cristo, não o nosso, que atinge os requisitos
de Deus, e é por Ele que a justiça pode ser transferida
para nossa conta, pela fé (olhando somente para Cristo).
Finalmente,
os reformadores disseram que tudo isso significa que Deus é quem tem todo o crédito. "Soli
Deo Gloria" (Somente a Deus seja a Glória)
era a forma que eles colocavam - nosso último "sola",
que quer dizer, "A Deus somente seja a Glória" Um
evangélico, portanto, era centrado em Deus; alguém
que estava convencido de que Deus havia feito tudo e que não
restava nada que o homem considerasse seu a não ser seu
próprio pecado. Isto não apenas transformou radicalmente
a vida devocional dos crentes que o abraçaram, mas toda
a estrutura social também.
Numa
velha taverna do século
XVII em Heidelberg, na Alemanha, lê-se no alto "Soli
Deo Gloria!" Johann Sebastian Bach, o famoso compositor,
assinou todas as suas composições com aquele slogan
da Reforma. Do mesmo modo, um outro compositor, Handel, declarou, "Que
privilégio é ser membro da igreja evangélica,
saber que meus pecados estão perdoados. Se nós
fossemos deixados à mercê de nós mesmos,
meu Deus, o que seria de nós?" Grandes e nobres vidas
requerem grandes e nobres pensamentos, e a soberania e a graça
de Deus são, para o crente, grandes e nobres pensamentos.
Os reformadores disseram a Roma o que J.B.Philipps, o tradutor
inglês da Bíblia, disse à igreja contemporânea: "O
Deus de vocês é muito pequeno".
A
Reforma, a qual produziu o termo "evangélico",
também recuperou a doutrina bíblica do "sacerdócio
universal de todos os santos" e a noção
bíblica do chamado e vocação. A igreja tinha
dividido os cristãos em primeira classe (aqueles que serviriam
no "ministério cristão em tempo integral")
e segunda classe (aqueles que estavam empregados em serviços "seculares").
Os reformadores concediam, por direito, que todos os cristãos
são sacerdotes e são, por isso, ministros de Deus,
independente de estarem varrendo uma sala para a glória
de Deus, moldando uma peça de cerâmica, defendendo
um cliente na corte, curando um paciente, ordenhando uma vaca,
ou conduzindo uma congregação no louvor. Não
há o "secular" e o "sagrado" - Deus
criou o mundo inteiro e fez a vida neste mundo como algo inseparável
de nossa própria humanidade.
Como
nós ajustamos as coisas
hoje?
A questão, é claro, é se "evangélico" hoje
significa o que significou há quinhentos anos.
Em primeiro lugar, muitos
dos evangélicos de hoje têm uma visão das Escrituras
inferior à que a igreja de Roma tinha no século
XVI. Instituições evangélicas
de peso duvidam da confiabilidade da Bíblia e de sua
infalibilidade - a menos, claro, que se trate daquilo que eles
já decidiram que é verdade. Outros acreditam
que a Bíblia é inerrante, porém acrescentam
novas regras e revelações ao cânon. "A
Bíblia é suficiente", nos aconselhariam
os reformadores. Os sermões, com muita frequência,
são "pop-inspiracionalistas" discursos superficiais
de "Como criar filhos positivos" ou "Como ter
uma auto-estima" em detrimento de sérias exposições
das Escrituras. De acordo com o Gallup, "Os EUA são
um país de iletrados bíblicos", ainda que
60 milhões deles se consideram "evangélicos".
Em segundo lugar, muitos
evangélicos
modernos também não acreditam que Cristo é suficiente. Às
vezes pessoas muito boas e nobres substituem Cristo como nosso único
Mediador, assim como o Espírito Santo. Enquanto louvamos
o Espírito juntamente com o Pai e o Filho, o Filho tem
este papel único de nosso único advogado e Mediador.
Não devemos olhar para a obra do Espírito nos
nossos corações, mas para a obra de cristo na
cruz. Às vezes, nós temos mediadores humanos
que não são o Deus-Homem Jesus Cristo. Precisamos
de outras coisas pelo meio, como a figura do pastor no "apelo" do
altar ao qual me referi anteriormente. Não muito tempo
atrás eu vi um tele-evangelista de sucesso tirando o
fone do gancho e informando seus telespectadores que "esta é sua
conexão com Deus". Uma banda secular, "Depeche
Mode", canta sobre "Seu próprio Jesus Pessoal" que
pode ser contactado ao se pegar no fone e fazendo sua confissão.
Enquanto estivermos neste assunto, também deveríamos
mencionar que foi a venda de indulgências de John Tetzel
(redução do período no purgatório
em troca de valores em dinheiro) que inspirou as "Noventa
e Cinco Teses "de Lutero, desencadeando a Reforma. "Quando
a moeda bate no cofre", o coro cantava, "uma alma
do purgatório é vivificada". Será que
isso realmente é diferente da venda da salvação
que temos visto na televisão cristã, rádio,
e mesmo em muitas igrejas? Dinheiro e salvação
têm sido distorcidos para serem uma coisa só no
meio de muitos de nós. "Eles vendem salvação
a você", canta Ray Stevens, "enquanto eles
cantam 'Amazing Grace' ('Graça Maravilhosa')".
Muitos
evangélicos hoje crêem
que "Somente a Graça" (sola gracia) é algo
como livre-arbítrio, uma decisão, uma oração,
uma ida até a frente, uma segunda bênção,
algo que nós façamos por Deus que nos dará confiança
de sermos alvo do Seu favor. Doutrinas como eleição,
justificação e regeneração são
discutidas quase que nunca, porque elas mostram o quadro de
uma humanidade que é incapaz e nem ao menos pode cooperar
com Deus em matéria de salvação. Se nós
formos salvos é Deus e Deus somente que deverá faze-lo.
E
sobre "Somente a Fé" (sola
fide)? Muitos evangélicos acham que a fé não é suficiente. Se
um indivíduo crê em Cristo e daí sai e o
anuncia, será que a fé é suficiente? Alguns
insistem que a fé mais a entrega, ou a fé mais
a obediência, ou fé mais um sincero desejo de servir
ao Senhor servirão como uma fórmula. O fato de
que os evangélicos hoje lutam com estas questões
indica que nós não ouvimos o "som seguro" de "Somente
a Fé" em nossas igrejas. Fé é suficiente
porque Cristo é suficiente.
Como
se comparariam os evangélicos
de hoje com os seus predecessores em matéria de "Somente
a Deus seja a Glória"? Auto-estima,
glória-própria,
centralidade do "eu" parecem dominar a pregação,
ensino e a literatura popular do mundo evangélico. Os
evangélicos de hoje sabem muito pouco do grande Deus
dos reformadores - um Deus que faz tudo conforme o Seu agrado,
em relação aos céus e às pessoas
sobre a terra e "que faz tudo conforme o conselho da Sua
vontade" (Dn. 4; Ef. 1: 11). Os evangélicos hoje,
refletindo sua cultura e sociedade mais ampla, estão
intimidados por um Deus que é Deus. Porém que
outro Deus é digno de confiança? Em poucas palavras,
que outro Deus existe? Louvar ao Deus de uma experiência
pessoal ou o Deus de preferência pessoal é louvar
um ídolo. Os reformadores levaram isso a sério,
e aqueles que quiserem ser evangélicos genuínos
também devem faze-lo.
Conclusão
Muitas
pessoas se perguntam por que o povo da "Reforma" parece bravo. Ninguém quer
estar ao redor de pessoas bravas - e eu não gostaria de
ser conhecido como uma pessoa "brava". Mas precisamos
encarar o fato de que estes são tempos de grande infidelidade
para o povo de Deus. A nós foi dada uma fé rica,
com Cristo no centro. Porém trocamos nossa rica dieta
por um saco de pipocas e estamos mal nutridos. Se os evangélicos
terão a mesma saúde espiritual que tiveram em épocas
passadas, eles terão que voltar para as verdades que fazem
de "evangélicos" "evangélicos". A
Bíblia - nosso único fundamento; Cristo - nossa única
esperança; Graça - nosso único evangelho;
Fé - nosso único instrumento; a Glória de
Deus - nosso único alvo; o Sacerdócio de todos
os santos - nosso único ministério.
Este evangelicalismo original ainda é suficiente para fazer,
mesmo de nossas menores vitórias, algo muito grande.
FONTE:
http://www.monergismo.com/textos/cinco_solas/evangelico_horton.htm
Extraído do Jornal "Os Puritanos" Ano V - Número 3
Extraído do Jornal "Os Puritanos" Ano V - Número 3
Nota Sobre o Autor: Dr. Michael Horton é professor no Seminário Teológico Reformado, Orlando-Flórida e editor da revista Modern Reformation.
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