Frequentemente, nos seminários teológicos, professores e alunos recorrem
aos rótulos para sistematizar pensamentos e categorizar pensadores. De
certa forma, não temos como evitar os rótulos. Qualquer epistemologia ou
cosmovisão organizará suas ideias por meio de rótulos convenientes. Até
certo ponto, e com certas qualificações, além de legítimo, torna-se
necessário categorizar com palavras chaves, “reformados”, “católicos”,
“liberalismo”, “ortodoxia”, “fundamentalista” etc. Porém, aquilo que é
conveniente como preceito organizador passa a ser inconveniente quando o
uso de um dado termo configura-se como abuso.
É muito fácil, por exemplo, rotular aqueles que têm uma visão teológica
que difere da nossa, como espécie de atalho para desqualificar toda e
qualquer colocação do outro. Assim, não demora para um termo técnico
perder qualquer definição ou sentido científico, assumindo, ao invés, a
natureza de uma caricatura. Neste sentido, há pelos menos três perigos
inerentes com a prática de rotular, todos os três interligados: (1)
rotular leva ao anti-intelectualismo; (2) rotular leva ao
desconhecimento; (3) rotular leva à descaracterização das pessoas.
1. Rotular leva ao anti-intelectualismo
Chega ao meu conhecimento o fato de que determinada turma de
seminaristas faz fortes objeções ao professor que pretende apresentar a
teologia de Rudolf Bultmann em sala de aula. Para a turma conservadora, já que Bultmann era liberal,
não seria interessante nem necessário tomar conhecimento daquilo que
ele pensava. Ora, se o professor fosse neo-Bultmanniano, se a turma
tivesse medo de que – como um leviatã por debaixo das águas – brotasse
alguma agenda anti-evangelical oculta, a queixa teria sido pelo menos
compreensível. Mas, não foi bem assim. Acontece que o professor era tão
conservador quanto aos alunos, havia sido criticado até por turmas
anteriores em razão de seu conservadorismo!
Evidentemente, declarar que fulano de tal é “liberal”, ou então
“fundamentalista”, pode operar como conveniente pretexto para evitar
leituras consideradas como “pesadas” ou pouco agradáveis. Este tipo de
atitude, porém, barateia o estudo teológico e fomenta o isolacionismo e
divisionismo no meio evangélico. Além do mais, rotular para não engajar é
um comportamento que deixa a igreja vulnerável diante dos “ventos de
doutrinas”. É só conhecendo seu oponente ideológico que é possível
refutá-lo com autoridade e convencê-lo em amor cristão. Independente da
linha teológica, optar por rotular o pensador e recusar-se a ler suas
obras é uma demonstração de preguiça intelectual.
2. Rotular leva ao desconhecimento
No idioma do povão é conhecido que “toda geralização é burrice”, e no
que se refere à prática acrítica de rotular, a sabedoria popular
procede. Voltando, por conveniência, ao exemplo anterior, rotular Bultmann de
“liberal” e resolver não engajar com ele é cometer um equívoco duplo.
Em primeiro lugar, chamar Bultmann de liberal sem conhecer suas obras é
um tanto quanto irônico, uma vez que o próprio Bultmann entendeu que
enfrentava e corrigia o pensamento liberal, sendo categorizado na
teologia sistemática como neo-ortodoxo!
Ora, quem lê Bultmann pode identificar traços liberais em algumas das
suas concepções e tem como falar com autoridade sobre o assunto. Quem lê
Bultmann pode averiguar de maneira inteligente se suas tentativas de
superar o liberalismo clássico tiveram êxito ou não. Mas, e quem não lê
Bultmann?
O segundo erro está relacionado àquilo que é perdido quando alguém ou
algo é simplesmente desqualificado por meio de um rótulo sem maiores
ponderações. Considere as seguintes pérolas teológicas: “Na pessoa de
Jesus, está claro que a realidade divina transcendente tornou-se
audível, visível e tangível na esfera do mundo terrestre”. Novamente,
“Para a glória de Deus, Cristo cumpriu sua obra (Rm 15.7) e a Ele,
entregará seu reino “a fim de que Deus seja tudo em todos” (1Co 15.28). E
quem foi o autor destes edificantes e ortodoxos pronunciamentos? Sim,
Rudolf Bultmann (1952b: 33; 1952: 352).
No Brasil e afora, alguns professores de teologia têm uma agenda
anti-evangélica e certo prazer doentio em ver alunos cristãos entrar em
crises de fé. Para esses propósitos aspectos da linha Bultmanniana podem
servir para “assustar” o verde seminarista.
Para o aluno que passa por esse tipo de provação, é tentador
esconder-se atrás de sua pilha de livros de Don Carson, John Piper e
John Stott. Porém, refugiar-se assim é esquecer do fato de que Carson,
Piper, Stott, e outros semelhantes são profundos conhecedores de
Bultmann e tantos outros chamados liberais.
Em vez de recuar, o seminarista pode tomar uma postura mais corajosa
tendo em vista 2Tm 1.7, preparando-se para orar e examinar as colocações
de Bultmann (ou seja quem for) com mente aberta, adotando para si como slogan a
sabedoria do apóstolo Paulo conforme 1Ts 5.21. Haverá, certamente,
discordâncias e frustrações na leitura daqueles que têm um ponto de
vista que choca com o nosso, mas, pode ser que em meio à poeira saia
alguma pérola.
3. Rotular levar à descaracterização das pessoas
Por trás das palavras existem pessoas, por trás das ideias existem
indivíduos. O problema mais grave dos rótulos é a sua tendência inerente
de descaracterizar as pessoas. “Aquele cara é um liberal”, comenta o
seminarista, veja como tal pronunciamento soa como denúncia pessoal.
“Ele é um fundamentalista” afirma o professor em tom condenatório e
superior. Vale lembrar que Jesus conversava com os “fundamentalistas”
(os saduceus), debateu com os “legalistas” (os fariseus), tinha entre
seus seguidores os “radicais” (Judas), e foi, de certa forma, taxado de
“liberal” (Lc 7.34). Porém, Jesus sabia separar as coisas: as palavras
são palavras, as pessoas são pessoas, as ideias são ideias, os
indivíduos são indivíduos.
Na verdade, a prática de rotular impensada e indiscriminadamente cria
mais confusão do que clareza no que se refere ao indivíduo responsável
pelas ideias. Inquestionavelmente, entre os maiores especialistas
neotestamentários da atualidade está o anglicano N. T. Wright (por
sinal, leitor profundo de Bultmann, e opositor contundente de muitas
ideias do mesmo). Veja, porém, como os rótulos são capazes de confundir
as coisas – no Reino Unido, Wright é rotulado como “conservador” pelos liberais, já nos Estados Unidos, é rotulado como “liberal” pelos conservadores!
Para complicar mais ainda, é provável que o “conservador”
norte-americano se autodenomina de “cristão evangelical”, enquanto os
“cristãos evangelicais” do Reino Unido chamariam a mesma pessoa de
“fundamentalista”! No Brasil, dependendo da região em que você estiver e
a identidade eclesiástica da pessoa com quem você fala, a palavra
“crente” pode ter uma conotação inteiramente positiva ou completamente
negativa, dá para entender?!
Evidentemente, tudo descamba para o terreno da subjetividade e o
relativismo. O que é “liberal” para mim, você poderia entender como
essencialmente “ortodoxo”, especialmente sob o ângulo ecumênico.
Igualmente, fica a dúvida, “liberal
em que sentido?”, ou então, “ortodoxo a nível teórico, mas na
prática...”. “Ah,”alguém poderia dizer, “mas, é para isso que temos as
confissões de fé!” Esta lógica vale até certo ponto e da minha parte,
creio que nos interesses do Reino de Deus temos de batalhar pela sã
doutrina da fé apostólica que herdamos. Porém, nós mesmos complicamos o
assunto, uma vez que as próprias denominações não conseguem concordar
quanto àquilo que é “essencial”, exigindo conformidade em assuntos
secundários e não essenciais (adiáfora),
rotulando quem não quer adotar suas práticas e costumes. Jesus nos
ensina a amar aos inimigos. Na contramão, odiamos os irmãos que não
encaixam no nosso esquema.
Por fim
Para os teólogos e estudantes, os rótulos servem como ferramentas quando
empregadas cautelosamente, com as devidas qualificações e
esclarecimentos. Via de regra, qualquer pessoa que for tentada a falar
de algum teólogo sem ter lido suas obras ou ouvido suas palestras deve
censurar-se a si mesma. Confiar em informações obtidas em segunda mão é
arriscado. Leia primeiro, fale depois, e lembra-se de que palavras não
devem ser confundidas com pessoas.
P.S. Devido aos exemplos citados acima, creio que cabe um aparte e um rotuluzinho, a saber, não sou Bultmanniano!
Referências bibliográficas
BULTMANN, Rudolf, Theology of the New Testament. (2 Volumes) Londres: SCM, 1952.
http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=320
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