
O que me maravilhou ao conhecer a fé reformada, em meados de 2006, não foi somente a dedicação dessa tradição em compreender com rigor o texto bíblico e os diversos temas que emergem da Escritura com profundidade e diligência, mas também a devoção em analisar a própria vida diante dos padrões bíblicos e se esforçar para viver de maneira a glorificar o nome de Deus. Aprendi então que conhecer a Deus nos traz como responsabilidade buscar viver em conformidade com a Sua vontade, por meio unicamente de Cristo Jesus (Coram Deo).
Os puritanos foram e são de grande influência sobre mim, não havia texto da Escritura que os puritanos não considerassem com atenção, habilidade e reverência, que não buscassem ser práticos, primeiramente avaliando o próprio coração e vida, para que pudessem ser, antes de tudo, exemplo para seus irmãos e testemunhas do Evangelho no mundo.
Temas como pecado e santidade não eram vistos como são hoje: monótonos e sem importância. Mas era evidente que entender a santidade de Deus, os Seus atributos e a Sua vontade, está associado a uma compreensão necessária da dinâmica da queda e de suas consequências no coração, para entendimento do por que “não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” (Romanos 7:19).
Minha primeira leitura dentro da tradição reformada foi Triunfo Sobre a Tentação do príncipe dos puritanos, John Owen. Aquele livro me atingiu como um raio, em virtude de que a partir dos textos da Escritura pude compreender um pouco mais sobre a maldade do pecado que ainda nos assedia nas recâmaras do coração, destronado por Cristo, mas nos sondando na carne para a queda e a vergonha.
Essa preocupação sobre a santidade e a verdadeira piedade, do conhecer para viver foi enfatizado também na obra do puritano batista Benjamin Keach (1640-1704). Muito menos conhecido do que o chamado príncipe dos puritanos, os escritos de Keach e sua preocupação com a santidade, mantiveram acesas no meio batista a paixão pela pureza, de maneira que vale a pena aos que desejam resgatar um pouco da história batista, atentar para um daqueles que foi um gigante na teologia e na piedade cristã.
A Antipatia dos Homens pela Verdadeira Piedade
Benjamin Keach em seu artigo Descrição da Verdadeira Piedade inicia
destacando a estranheza que os homens possuem para com a prática da
verdadeira piedade dando a ela conceitos estranhos à Escritura ou
rebaixando-a como sendo mera imposição de padrões que devem ser
rejeitados em prol de uma anarquia moral. Keach escreve:
Muitos erram
grandemente ao entendê-la como mera moralidade; outros a confundem com
uma falsa piedade; e outros, seja por ignorância ou malícia, a pregam
como singularidade, teimosia, orgulho ou rebelião. Os últimos declaram
que não merece existir porque é uma perturbadora da paz e da ordem onde
quer que surja. Sim, a consideram como uma companheira tão contenciosa e
lúgubre que é a causa de todas aquelas infelizes diferenças, divisões,
problemas e infortúnios que abundam no mundo.
A primeira lição que Keach nos ensina é
que os inimigos de Deus odeiam a verdadeira piedade, porque ela
confronta e exige alteração em seus padrões caídos de vida, ao
apresentar o padrão divino, exige que ele seja respondido e que tudo o
mais seja conformado a ele.
Os homens que desde o Éden desejam viver
suas vidas para adorar e servir a sua própria perversidade odeiam
qualquer coisa que aponte o seu erro.
Dentro da igreja não é diferente, muitos
que se aproximam das igrejas locais não desejam conhecer a Deus e se
submeterem a Ele, mas sim ouvir algo que idolatre ao seu próprio ego.
Os pastores e pregadores da igreja, em
prol de números e falso crescimento, comportam-se com passividade e
infidelidade para com Deus, abandonando a pregação da Palavra e tratando
com indiferença a verdadeira piedade cristã, transformando as igrejas
locais em antros de culto ao ego e ao homem.
Mas, no que consiste então a verdadeira piedade e por que ela é tão deturpada e tão odiosa a tantos homens?
A Piedade e o Conhecimento da Palavra De Deus
Em resumo, Keach apresenta a verdadeira
piedade em três pontos, consideraremos neste primeiro artigo a relação
da piedade com um correto conhecimento de Deus, o que Keach chama de “a parte essencial da verdadeira piedade”, que consiste no seguinte:
Primeiramente
[…] no conhecimento correto das verdades divinas e nos princípios
fundamentais do Evangelho, os quais todos os homens devem conhecer e
dominar. “E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus se
manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos,
pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória” (1
Timóteo 3:16). Vemos por esse texto que as grandes verdades da religião
cristã são chamadas de piedade.
O que Keach destaca é que uma fé
verdadeira e genuína, uma piedade aprovada pelo Senhor consiste
primeiramente em um credo genuíno, em crer no Cristo apresentado nas
Escrituras, em um conhecimento correto do Deus triuno e Sua obra de
redenção no Seu Filho.
Crer em um falso Deus, crer em um Cristo
que não é aquele que Se revela na Palavra é crer em um falso Evangelho.
Viver segundo padrões de um falso deus é possuir uma falsa religião. A
ignorância de Deus conduz o homem ao pecado e à organização de padrões
próprios para tentar viver, no máximo, uma suposta vida cristã.
De maneira alguma Keach está defendendo
uma intelectualidade fria e morta, um mero acúmulo de conhecimento,
muito menos uma perfeição teológica que poucos alcançarão. Não! O que
temos aqui é uma defesa de que Deus fala aos Seus filhos as verdades
fundamentais acerca da Sua pessoa e obra que devem ser conhecidas para
legitimar uma fé genuína.
Keach lista sete proposições essenciais à verdadeira piedade cristã:
- Que existe um Deus, eterno, infinito, santíssimo, onisciente, absolutamente justo, bom e cheio de graça, a divindade gloriosa que existe em três pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – e estes são um, a saber, um em Sua essência.
- Que esse Deus, por Seu grande amor e bondade, nos deu uma regra de fé e prática segura e infalível que são as Sagradas Escrituras. Através delas, podemos conhecer, não só que existe um Deus e Criador, mas também a maneira como o mundo foi criado, com os desígnios e a razão, pela qual Ele fez todas as coisas. Também nos é dado a saber como entrou o pecado no mundo e qual é a justiça que Deus requer para nossa justificação (ou absolvição da culpabilidade do pecado), a saber, por um Redentor, Seu próprio Filho, a quem enviou ao mundo. Não existe nenhuma outra regra ou caminho para conhecer tais verdades a fim de que os homens sejam salvos, senão a revelação e os registros das Sagradas Escrituras, visto que o mistério da salvação está muito além da compreensão humana e, portanto, é impossível de ser entendido por meio da iluminação natural dos homens.
- Que o nosso Redentor, o Senhor Jesus Cristo, que é o Fiador da Nova Aliança e único Mediador entre Deus e os homens, é plenamente Deus (da essência do Pai) e plenamente homem (da substância da virgem Maria), tendo essas duas naturezas em uma única pessoa, e que a redenção, paz e reconciliação são somente através deste Senhor Jesus Cristo.
- Que a justificação e o perdão do pecado são possíveis exclusivamente mediante aquela plena satisfação que Cristo fez da justiça de Deus e são alcançados somente pela fé através do Espírito Santo.
- Que todos os homens que são ou serão salvos devem ser renovados, regenerados e santificados pelo Espírito Santo.
- Que no dia final haverá uma ressurreição dos corpos de todos os homens.
- Que haverá um juízo eterno, a saber, todos comparecerão perante o tribunal de Jesus Cristo no grande dia e prestarão conta de todas as coisas que fizeram no corpo, e que haverá um estado futuro de glória e felicidade eterna para todos os crentes verdadeiros, e de tormento e sofrimento eternos para todos os não crentes e pecadores, que vivem e morrem em seus pecados.
Agora, no verdadeiro conhecimento e
crença desses princípios (que são a base da verdadeira religião ou da fé
cristã) encontra-se a verdadeira piedade no que diz respeito à sua
parte essencial.
Quando Keach trata essas sete
proposições como a parte essencial da piedade, ele se refere ao conteúdo
da fé genuína. Devemos destacar que nessas sete proposições Keach nada
mais faz do que resumir o Evangelho do Senhor Jesus Cristo e expor as
verdades eternas que todos os homens devem crer, pois sem elas não é
possível apresentar a Cristo verdadeiramente como o Rei Salvador.
Sendo assim, o conteúdo da genuína fé,
da verdadeira piedade é o Evangelho. É o Evangelho que deve ser pregado e
crido para salvação dos homens e glória de Deus.
A Relevância da Abordagem “Essencial” de Benjamin Keach para os Dias Atuais
A defesa de Keach da essência e do
conteúdo da verdadeira piedade cristã é de extrema relevância para nós
hoje. Uma simples investigação daquilo que é pregado nos púlpitos e
professado como crença irá expor tais palavras como credos que se
afastam totalmente das verdades eternas reveladas para a salvação dos
homens.
São termos, frases de feito e
proposições egolátricas, os quais nada têm a ver com a Palavra de Deus.
Ou disfarçando-se de verdade, na sua essência são deturpações da
verdadeira Palavra do Senhor, nos mesmos moldes do diálogo da queda, no
Éden, entre Eva e Satanás.
O desprezo pela Palavra, assim como
aconteceu no Éden, é o fundamento de toda a rebeldia humana, portanto,
uma fé genuína será conduzida não mais a confiar no que diz os homens ou
Satanás, mas na exaltação da revelação de Deus, pois nela se encontra o
verdadeiro Cristo e Sua obra em favor dos homens para a glória de Deus.
Uma piedade verdadeira, irá se afastar
de qualquer crença maligna que diminua a pessoa e a obra do Senhor Jesus
Cristo a algo sem relevância. Ou que mesmo por uma vírgula ou um til
modificam a Palavra de Deus revelada aos homens.
A conclusão é que uma piedade genuína
possui como essência ou conteúdo a Palavra de Deus. Qualquer coisa que
esteja aquém ou além disso é de procedência maligna e serve unicamente
para conduzir o indivíduo por modelos diferentes à mesma perdição para a
qual todos os que não creem em Cristo estão sendo conduzidos.
Desse modo, precisamos entender com
urgência que não somos chamados por Deus a crer em um Cristo, mas no
Cristo de Deus, e Ele se encontra revelado genuína e unicamente nas
Escrituras Sagradas, que devem ser ouvidas e cridas para a salvação por
meio da fé em Cristo Jesus. “Visto que com o coração se crê para a
justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação” (Romanos 10:10).
Enquanto os homens se negarem a pregar a
Palavra e crê-la, não experimentarão da genuína salvação e da
verdadeira piedade gerada por Cristo nos corações.
Continuaremos no próximo artigo tratando sobre a piedade como conformidade de vida às verdades sagradas.
As citações foram extraídas e traduzidas do artigo Descripción de La verdadera Piedad publicado no jornal Porta Voz de La Gratia nº 192.
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