
Por Isabella Passos e Sâmara de Araújo
“Deus é mãe. [...] Deus é mulher [...] Deus há de ser fêmea”. Os versos que abrem cada um dos trechos da música carro chefe do álbum Deus é mulher, de Elza Soares, caiu no gosto de muitos que, entre outras coisas, perceberam nesta música a oportunidade de afirmação de vários grupos de identidade de gênero ao relacionar intrinsecamente o Absoluto ao feminino. Mas a questão de deus como mulher é muito mais antiga que imaginamos. Homens e mulheres cultuaram deusas em várias culturas e o registro mais antigo que temos é o de Pótnia, a deusa de Çatal Huyuk, Turquia, a mais antiga cidade que se conhece do período Neolítico, cerca de 10 mil anos atrás.
Mais
recentemente, a questão de Deus como mulher também apareceu entre
cristãos. Em 1978, a teóloga e historiadora feminista Carol P. Christ
escreveu o famoso artigo Why women need the Goddess, onde
defendeu uma “teologia da Deusa” para “a anulação do poder dos símbolos
patriarcais masculinos sobre a psique e a alma feminina”. E, de lá para
cá, muitas teólogas embaladas pelos escritos de Simone de Beauvoir tem
empregado algum esforço em reformular a imagem de Deus. Escreve
Beauvoir: “o homem desfruta da grande vantagem de ter um deus endossando
o código que ele escreve; e uma vez que o homem exerce uma autoridade
soberana sobre as mulheres, é especialmente afortunado que essa
autoridade tenha sido investida nele pelo Ser Supremo. Para os judeus,
maometanos e cristãos, entre outros, o homem é mestre por direito
divino; o temor de Deus, portanto, reprimirá qualquer impulso de revolta
na mulher oprimida” [1]. Isto é, a questão posta por essas autoras é a
de que a imagem de um “deus masculino” seria fonte de profunda opressão
às mulheres sendo importante, portanto, resgatar uma compreensão de
“Deusa” que sempre existiu fora das principais religiões monoteístas.
Em
outra perspectiva, Alister McGrath [2] ressalta que muitas teólogas,
“feministas responsáveis”, têm realizado um importante trabalho “de
reavaliar o passado cristão, dando honra e reconhecimento a gerações de
mulheres fiéis cuja prática, defesa e proclamação de fé passaram
despercebidas por uma grande parte da igreja cristã”, no entanto, sugere
prudência àqueles que pretendem se voltar à natureza da linguagem
teológica e do simbolismo cristão. Ele afirma que os modelos ou imagens
escriturísticas de Deus o revelam em condições acessíveis à mente humana
não podendo ser confundido o que é próprio de Deus com o que é próprio
do humano. Como Calvino declara, tais imagens são Deus se acomodando a
nossa fraqueza. E é importante ter em conta que essa fraqueza pode fazer
confundir “alhos com bugalhos” quando não prestamos atenção à natureza
da linguagem teológica e a complexidade de seu objeto de investigação.
Em
nossa limitada humanidade, os modelos de Deus se baseiam na vida
ordinária. Da mesma forma que Jesus utilizava as parábolas da vida comum
para seus ensinamentos teológicos, os autores das Escrituras usaram o
mundo experiencial da Palestina para narrar a natureza e os propósitos
de Deus. Em uma sociedade masculina, muitos dos modelos utilizados foram
os masculinos, como por exemplo, a ideia da autoridade de Deus que só
poderia ser representada usando-se imagens como a de um pai, um juiz ou
um rei. Mas há outros modelos quando Deus é comparado a uma rocha, que
não possui gênero, transmitindo a ideia de força pela estabilidade e
permanência. Há ainda, imagens femininas que descrevem o cuidado e a
compaixão de Deus, imagens frequentemente ligadas ao amor de uma mãe por
seus filhos. E, então, “quando sugerimos que o modelo apropriado para
Deus é o de um pai, estamos dizendo que, em certos aspectos, Deus pode
ser imaginado como um pai, como, por exemplo, na disciplina de seus
filhos. Em certos aspectos, Deus é como uma mãe, como, por exemplo, em
seu cuidado e compaixão por seus filhos. Contudo, Deus não é masculino e
Deus não é feminino”, defende McGrath.
Dessa
forma, como destaca McGrath, não é tanto a linguagem humana que importa,
mas o que está sendo comunicado sobre Deus. E, portanto, apegar-se
demasiadamente às imagens, ao invés de elucidar o seu conteúdo
significativo, demonstra uma chocante incapacidade de colocar o
entendimento no caminho correto da interpretação bíblica, bem como, de
comunicá-lo com a riqueza que os símbolos exigem. Também demonstra pelas
teologias regionais uma fuga da difícil tarefa de conciliar a
compreensão dos símbolos com o seu significado atemporal, independente,
dos conflitos e incorreções humanas. Independente de seus pecados e
prerrogativas. O que nos torna ainda mais incapaz de compreender o que é
todo Outro. O que é Deus por seus atributos e independência do humano.
Compreender
Deus como um leopardo, uma rocha ou uma galinha que ajunta seus
pintinhos nos auxilia a pensar sobre Ele de maneira mais acessível,
intensa e significativa. Entretanto, Deus não é nem leopardo, nem rocha e
nem uma galinha. Deus se revelou de diferentes maneiras para nos
achegarmos a Ele como somos, com nossas limitações, debilidades, falhas e
carências. Por isso, podemos desenvolver mais intimidade e comunhão com
o Deus criador e redentor mesmo com toda essa precariedade. E não há
qualquer base para afirmar que a maneira cristã de falar sobre Deus
oprima as mulheres e, muito menos, postular Deus com qualquer atributo
da ordem criada. Nem a sexualidade masculina e nem a sexualidade
feminina podem ser atribuídas a Deus, pois, como nos lembra McGrath,
“Ele é supracultural, assim como é suprassexual” e as Escrituras
confirmam tal identidade.
Dessa forma, os
sistemas de símbolos em torno de Deus não podem e nem precisam ser
rejeitados ou substituídos por um análogo. Antes, precisam ser
entendidos e comunicados em sua verdade mais rica e profunda,
principalmente, por aqueles que criticam alguma generificação de Deus.
Não é substituindo um análogo por outro que a questão entre homens e
mulheres será resolvida. Deus não se submete às nossas guerras
narrativas. E quem vai por este caminho atesta a incompreensão a
respeito das proporções manejáveis à mente humana para que ela possa
lidar com a noção de Deus empreendendo, dessa forma, um desserviço ao
entendimento mais substancial acerca da natureza divina. Erra tanto
quanto aquilo que critica tendo ainda, posteriormente, que lidar
honestamente com a opção de Deus por se encarnar em um homem que o chama
de “Pai”. E aí?
Referências
[1] O segundo sexo: A experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 386.
[2] Apologética cristã no século XXI: ciência e arte com integridade. São Paulo: Editora Vida, 2008, p. 288-302.
• Sâmara de Araújo
é pedagoga, professora de educação básica e doutoranda em educação pela
UFMG. Mora em Belo Horizonte e congrega na Comunidade Presbiteriana
Central.
• Isabella Passos é formada em Filosofia pela PUC-Minas. Mora em Belo Horizonte e congrega na Igreja Esperança.
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