Frida Maria
Strandberg Vingren morreu aos 49 anos, no dia 30 de setembro de 1940, na
Suécia, nos braços da filha. Abatida, ela pesava 23 quilos.
No decorrer dos cinco anos anteriores, entre idas e vindas em um hospital psiquiátrico de Estocolmo, a missionária
sueca perdera quase 40 quilos. Ela fora internada pela primeira vez no
dia 12 de janeiro de 1935, levada da estação central da cidade, quando
tentava tomar um trem que a levaria para Portugal - de onde,
acredita-se, pegaria um navio de volta para o Brasil.
Casada com o sueco que fundou, em Belém do Pará, a Assembleia de
Deus, Frida se tornou uma das mais importantes lideranças da igreja no
decorrer dos 15 anos em que esteve no Brasil. Ajudou a construir o
ministério no Rio de Janeiro, comandava um jornal e pregava em praça
pública.
Suas atribuições – muitas até então reservadas apenas aos
homens –, entretanto, desagradaram pastores brasileiros e suecos,
fizeram com que ela fosse perseguida e pressionada a voltar a seu país
de origem, onde teve um fim trágico.
A história
da missionária passou décadas esquecida e, nos últimos anos, vem sendo
resgatada tanto na Suécia quanto no Brasil. Foi tema de livro, de tese
de doutorado e voltou a alimentar o debate – atual e ainda polêmico –
sobre o papel da mulher na Assembleia de Deus, a maior religião
pentecostal do país, com 12 milhões de fiéis.
Belém do Pará, onde tudo começou
Frida
embarcou para Belém em 1917, aos 26 anos, enviada pela Igreja
Filadélfia, uma denominação pentecostal baseada em Estocolmo.
Veio
para juntar-se a Gunnar Vingren, que, sete anos antes, havia fundado a
Assembleia de Deus no Brasil. Eles haviam se conhecido naquele mesmo
ano, quando o missionário estava na Suécia para arrecadar fundos e
visitar a família.
"Ele conta a ela sobre a missão e ela se
apaixona pela ideia do Brasil", diz Valéria Vilhena, pesquisadora da
Universidade Metodista, que baseou o doutorado na vida da missionária e
que lança neste ano um livro sobre sua história.
Três meses depois de desembarcar no Norte do país,
ela se casa com Gunnar, em uma cerimônia realizada pelo pastor sueco
Samuel Nyström, que, ironicamente, se tornaria um de seus maiores
antagonistas.
No início, Frida restringe seu trabalho aos
serviços sociais da igreja, tradicionalmente entregues às mulheres.
Cuidar dos filhos, zelar pelos órfãos, visitar os idosos e os doentes.
A
jovem ia com frequência aos centros afastados que isolavam pacientes
com hanseníase do restante da população – os chamados leprosários, que
surgiram no Brasil naquela época –, diz Kajsa Norell, jornalista sueca
autora de Halleljua Brasilien!, lançado em 2011, que conta a história do surgimento da Assembleia de Deus no Brasil.
O
marido, missionário "por vocação", na definição de Vilhena, estava
constantemente viajando, buscando expandir o trabalho da igreja. A saúde
frágil fazia com que ele quase sempre voltasse para casa doente. As
particularidades da região que escolheu para pregar não ajudavam: pegou
malária diversas vezes.
"Ele ficava muito tempo de cama", diz o sociólogo Gedeon Freire de Alencar, autor de Matriz Pentecostal Brasileira: Assembleias de Deus, 1911-2011 e um dos primeiros a redescobrir a história de Frida, no início dos anos 2000.
Com
o tempo, a missionária assume cada vez mais as atribuições de Gunnar em
Belém. Talentosa, ela começa a traduzir os hinos da igreja sueca para o
português. Canta, toca e começa a pregar.
"Ela transforma os
boletins entediantes dos missionários (publicados nos jornais da igreja
sueca) em histórias incríveis. Um dos textos conta sobre a prisão que
ela visitava toda semana em Belém, que mantinha 200 garotos entre cinco e
20 anos de idade, alguns que estavam ali simplesmente por não terem
pai", conta Norell, que passou meses entre os arquivos da Igreja
Filadélfia, mantidos em um castelo nas redondezas de Estocolmo.
Frida passa então a bater de frente com o pastor
Samuel Nyström – à frente do jornal da Assembleia de Deus, batizado de
Boa Semente –, que era radicalmente contra que as mulheres pudessem
pregar.
Em sua correspondência com a liderança da igreja na
Suécia, Nyström passa a reclamar da missionária em toda oportunidade que
lhe aparece. "Nas cartas que escrevia a Lewi Pethrus (uma das maiores
figuras do pentecostalismo sueco) o tom é de fofoca mesmo: 'Hoje ela fez
isso e isso, ontem foi isso e isso'", afirma Norell.
Em 1924, com
quatro filhos, o casal Frida e Gunnar decide então se mudar para o Rio
de Janeiro para fundar um novo ministério. "Eles decidem sair de Belém
porque a tensão já era insustentável", ressalta Vilhena.
O ministério feminino no Rio de Janeiro
Na
capital carioca, Frida expande seu trabalho. Torna-se a primeira mulher
da religião a dirigir uma escola bíblica dominical, fundada em uma
prisão, e inicia o jornal Som Alegre, através do qual passa a defender o
ministério feminino.
Seus textos citam com frequência trechos da Bíblia
que, em sua visão, deixavam claro que as mulheres poderiam pregar,
ensinar ou doutrinar.
O comportamento desagrada também pastores
brasileiros, incluindo Paulo Leivas Macalão, gaúcho, de família abastada
e com tradição militar, que estava à frente da Assembleia de Deus
Madureira, hoje uma das maiores do país.
"Parte dos pastores da
igreja no Rio de Janeiro já não queria se submeter ao sueco pobre e
semiletrado. A mulher, muito pior", acrescenta Alencar.
Ele
lembra que, no início do século 20, a Suécia era um país pobre, onde a
igreja luterana era a religião oficial. Perseguidos, os pentecostais
migraram especialmente para os Estados Unidos. Os que vieram para o
Brasil escolheram Belém porque, na época, graças à riqueza gerada pela
borracha, era uma das cidades mais ricas do país.
A convenção de 1930 e o 'enquadramento'
As
tensões culminam na convocação da primeira grande convenção da
Assembleia de Deus, realizada no dia 12 de julho de 1930, em Natal (RN).
"O motivo da convocação foi Frida", destaca Isael Araújo, pastor da Assembleia de Deus em Niterói e autor da biografia Frida Vingren, lançada em 2014.
No
encontro, os pastores definiram as atividades que poderiam ser
desempenhadas pelas mulheres na igreja. Elas não chegaram a ser
expressamente proibidas, por exemplo, de pregar - mas a atribuição não
estava na lista do que as religiosas "tão somente" poderiam fazer.
"Foi
um enquadramento", acrescenta Araújo, que foi chefe do Centro de
Estudos do Movimento Pentecostal (CEMP) da Casa Publicadora das
Assembleias de Deus (CPAD). Em todo o processo, Gunnar ficou ao lado da
esposa e defendeu o ministério feminino, mas foi voto vencido.
Nos
meses que se seguiram, a situação ficou pior. Frida usou seu espaço no
jornal da Assembleia para desafiar as decisões tomadas na convenção e
para pedir que as mulheres não recuassem. "Um dos textos dessa época
tinha como título 'Deus nos convoca para a guerra'. Era uma demonstração
direta de insubordinação", diz Alencar.
O clima de conflito fica claro nas cartas trocadas
entre os missionários e em outros documentos da época: "Eles (os
missionários brasileiros) precisam de homens. De preferência, com as
mesmas qualidades de liderança como a de Frida e Adina (Nelson, esposa
de Otto Nelson), mas do sexo masculino", escreve o pastor A.P. Franklin
no jornal da igreja na Suécia, chamado The Harald.
A situação
escalou depois de um suposto caso de adultério de Frida com um
brasileiro. Apesar de não haver uma confirmação documental do romance
que a missionária teve com o rapaz, bem mais novo que ela, os indícios
levam a crer que isso de fato aconteceu.
"Eu realmente acredito
que seja verdade", diz Norell, que entrevistou um dos filhos de Frida e
algumas de suas netas enquanto escrevia o livro e que identificou o
assunto em cartas enviadas à Suécia "por pessoas que não eram hostis a
ela".
O pastor que era 'uma mistura de Edir Macedo com Silas Malafaia'
A
situação fica insuportável no Brasil e, em de 1932, o casal, que na
época tinha seis filhos, decide retornar à Suécia. Antes de partir,
contudo, eles perdem a filha mais nova – e Gunnar morre pouco tempo
depois de chegar à Europa.
Frida quer retomar a vida de
missionária, mas a liderança da igreja no Brasil não aprova seu retorno.
Na Suécia, suas aspirações também são tolhidas por Lewi Pethrus, um dos
maiores líderes da igreja pentecostal no país.
Inimigo poderoso, ele era "mistura de Edir Macedo
com Silas Malafaia", define o pastor Araujo. A comparação com o fundador
da Igreja Universal do Reino de Deus, denominação neopentecostal, e com
o pastor do ministério Vitória em Cristo, ligado à Assembleia de Deus,
dá conta do espírito "empreendedor" de Pethrus e de sua postura muitas
vezes polêmica.
Em 1964, Pethrus fundaria o partido democrata-cristão sueco – o Kristdemokraterna (KD) –, de centro-direita.
Diante
dos reiterados pedidos de Frida, o líder afirma que seu trabalho no
Brasil havia prejudicado a missão e dá-lhe um não definitivo.
Ela levanta então recursos por conta própria e decide ir para Portugal.
O hospício e o esquecimento
Detida na estação de trem de Estocolmo, ela já sai com uma camisa de força em direção ao hospital psiquiátrico.
A igreja lhe tira a guarda dos filhos e doa todos os seus pertences.
Para
Kajsa Norell, é difícil dizer se, naquele momento, Frida realmente
tinha algum tipo de doença psiquiátrica. "Ela estava esgotada, física e
mentalmente, já tinha tido malária no Brasil e, provavelmente, sofria de
alguma doença na tireoide".
Em nenhum dos prontuários médicos, contudo, há o diagnóstico de que ela sofria de algum distúrbio mental.
Durante
sua pesquisa, a autora percebeu "alguma coisa estranha" nos olhos de
Frida. Quanto mais recente a fotografia, mais saltados eles pareciam. A
partir dos registros médicos da missionária, especialistas concluíram
que ela tinha possivelmente hipertireoidismo – doença que provavelmente a
matou.
Para o pastor Araújo, o conflito direto com as
maiores lideranças da igreja está entre as razões para o 'esquecimento'
de Frida. Ele nega que a biografia, publicada pela editora da Assembleia
de Deus, seja uma ação de reparação à missionária.
"Gunnar
Vingren, o pioneiro da igreja, já tinha uma biografia. A esposa, ainda
não. Não quis fazer uma biografia crítica, porque não sou sociólogo",
justifica.
Ele diz ter se deparado com a história quando
trabalhava no Dicionário do Movimento Pentecostal, em 2007, e viajou à
Suécia em 2008. Os diários de Gunnar e parte do acervo que estava com a
família, incluindo fotos, hoje se encontram no Brasil.
Na Suécia, a Igreja Filadélfia foi confrontada com a trajetória de Frida quando o livro de Kajsa Norell foi lançado.
"Aquilo era uma novidade completa para nós", diz Gunnar Swahn, que foi secretário de missões da Igreja Filadélfia até recentemente, quando se aposentou. "Foi horrível o que fizeram com ela. Muita gente ficou chocada com a forma como ela foi tratada pelas antigas lideranças".
O
livro, ele acrescenta, se soma a outras obras publicadas nos últimos
anos na Suécia que revelam traços e atitudes polêmicas de Lewi Pethrus,
em relação ao qual a igreja tem hoje uma postura crítica. "Digamos que
ele não é idolatrado pelos fiéis, apesar de ainda ser uma figura
importante".
Questionado sobre as mulheres, se elas hoje podem ser
pastoras, ele se apressa: "Ah, sim! Nós gostamos de pensar que somos
uma igreja progressista."
A BBC News Brasil não teve retorno da Assembleia de
Deus Belém sobre o pedido de entrevista e não conseguiu contato com a
Assembleia de Deus Madureira, no Rio de Janeiro.
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