Luiz Sayão
Deus permite o mal, mas nunca é o criador direto do mal ético; ele não é o autor do pecado
Com certeza uma das perguntas mais difíceis que um leitor da Bíblia vai enfrentar seja essa: Deus pode enviar um espírito mau? Como entender a história do rei Saul? O texto bíblico afirma que um “espírito mau” da parte do SENHOR atormentava Saul (1 Sm 16:14). Se Deus é bom, como ele pode agir de modo aparentemente tão contraditório?
A questão torna-se até mais complicada quando vemos que esse texto não é único na Bíblia. Há diversos outros textos bíblicos semelhantes: Em Juízes 9:23 lemos que Deus envia um “espírito mau” para atuar entre Abimeleque e os “cidadãos de Siquém”; 1 Samuel 18:10 e 19:9 trazem mais detalhes sobre o agir do espírito mau da parte do SENHOR em Saul; 2 Crônicas 18:19-22 menciona até um “espírito mentiroso” colocado pelo SENHOR na boca de profetas. Há ainda textos que incomodam por dizer que “Deus se arrependeu do mal” (Êx 32:14) e que “Deus cria o mal” (Is 45:7).
Para começar a discutir uma questão tão complexa é importante destacar que o substantivo “mau” e seu adjetivo “mau” tem significado muito genérico na Bíblia. Na verdade, o termo precisa ser dividido em categorias menores. John Hick, um grande estudioso do assunto, tem dividido o mal em quatro categorias:
a) existe o mal originado por seres pessoais. Esse é o mal moral, isto é, o pecado;
b) há também o mal como sensação física da dor e a angústia do sofrimento psicológico, isto é, o sofrimento subjetivo;
c) há ainda o mal natural: é o caso do terremoto, da epidemia etc.;
d) existe finalmente o que é chamado de mal metafísico ou inerente à criatura. Refere-se à finitude e contingência dos seres criados que lhe dão condição perene de imperfeição.
A tradição teológica clássica sempre ressaltou que o mal tem origem no uso incorreto do arbítrio humano. Agostinho, o famoso bispo de Hipona, afirmava que tudo o que Deus criou é bom, e que o que chamamos de mal ocorre apenas quando seres intrinsecamente bons se corrompem. Não pode existir nada inteiramente mau, nenhum ser. Mesmo não admitindo a existência ontológica do mal, Agostinho procurou defender a Deus de qualquer culpa pela existência do mal, a negação do bem. Por isso, afirmou também que se a existência do mal não fosse uma coisa boa, certamente Deus onipotente não o teria permitido.
Para entender os textos bíblicos, é preciso reafirmar que a fé bíblica descrita na Bíblia Hebraica, monoteísta e ética em sua essência, nunca admitiu a ideia de que há seres maus comparáveis a Deus. Não existe dualismo nas Escrituras. Toda experiência humana deve ser explicada em Deus e a partir dele. A visão monista do mundo e do Deus revelado a Israel fazia com que até mesmo qualquer experiência negativa também fosse atribuída a Deus. Por isso até os chamados espíritos maus são enviados por Deus e estão sob o seu domínio, como é o caso de Satanás no livro de Jó (Jó 1:6).
Essa perspectiva desdobrou-se num certo henoteísmo, visto que Deus é considerado em alguns textos como o deus dos deuses (Sl 95:4), isto é, acima dos deuses que só existem sociologicamente. Os deuses das nações nada são, e o Deus verdadeiro está acima de todos eles. Assim, é possível explicar também a ideia da vitória divina sobre as figuras mitológicas e suas nações. Este é o caso de Raabe, do Leviatã e da Serpente. Na verdade, não há espaço para qualquer divindade ou ser mitológico que se apresente como o opositor de Deus. Isso significa que todos os “seres maus” estão subordinados a Deus, e de certa forma, acabam sendo também “seus servos”, pois não passam de criaturas que só agem até o limite que Deus lhes permite atuar.
Retomando a amplitude semântica do termo “mal”, é necessário entender que a palavra não tem significado ético em muitos dos textos bíblicos já citados aqui. Na verdade, “mal” em diversas passagens bíblicas tem o significado de “desgraça”, “infortúnio”, “calamidade”. Se entendermos o termo dessa forma, é muito provável que o “espírito mau” de 1 Samuel 16 não seja um demônio que se opõe a Deus, mas sim um “espírito arruinador” (que traz sofrimento) de juízo. Isso nos ajuda a entender também que o SENHOR “se arrependeu da punição (mal) que traria ao povo”, pois Deus não se arrepende do mal enquanto pecado! Finalmente Deus não cria o mal, no sentido ético do termo, mas sim “a desgraça, a calamidade” (Veja Isaías 45:7 na NVI). Deus permite o mal, mas nunca é o criador direto do mal ético; ele não é o autor do pecado.
Para entender os textos bíblicos, é preciso reafirmar que a fé bíblica descrita na Bíblia Hebraica, monoteísta e ética em sua essência, nunca admitiu a ideia de que há seres maus comparáveis a Deus. Não existe dualismo nas Escrituras. Toda experiência humana deve ser explicada em Deus e a partir dele. A visão monista do mundo e do Deus revelado a Israel fazia com que até mesmo qualquer experiência negativa também fosse atribuída a Deus. Por isso até os chamados espíritos maus são enviados por Deus e estão sob o seu domínio, como é o caso de Satanás no livro de Jó (Jó 1:6).
Essa perspectiva desdobrou-se num certo henoteísmo, visto que Deus é considerado em alguns textos como o deus dos deuses (Sl 95:4), isto é, acima dos deuses que só existem sociologicamente. Os deuses das nações nada são, e o Deus verdadeiro está acima de todos eles. Assim, é possível explicar também a ideia da vitória divina sobre as figuras mitológicas e suas nações. Este é o caso de Raabe, do Leviatã e da Serpente. Na verdade, não há espaço para qualquer divindade ou ser mitológico que se apresente como o opositor de Deus. Isso significa que todos os “seres maus” estão subordinados a Deus, e de certa forma, acabam sendo também “seus servos”, pois não passam de criaturas que só agem até o limite que Deus lhes permite atuar.
Retomando a amplitude semântica do termo “mal”, é necessário entender que a palavra não tem significado ético em muitos dos textos bíblicos já citados aqui. Na verdade, “mal” em diversas passagens bíblicas tem o significado de “desgraça”, “infortúnio”, “calamidade”. Se entendermos o termo dessa forma, é muito provável que o “espírito mau” de 1 Samuel 16 não seja um demônio que se opõe a Deus, mas sim um “espírito arruinador” (que traz sofrimento) de juízo. Isso nos ajuda a entender também que o SENHOR “se arrependeu da punição (mal) que traria ao povo”, pois Deus não se arrepende do mal enquanto pecado! Finalmente Deus não cria o mal, no sentido ético do termo, mas sim “a desgraça, a calamidade” (Veja Isaías 45:7 na NVI). Deus permite o mal, mas nunca é o criador direto do mal ético; ele não é o autor do pecado.
Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
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