Salmo 23
É possível que Davi tenha escrito este Salmo quando já possuía uma
idade avançada. Suas experiências lhe renderam uma simplicidade e
lucidez quanto a presença constante de Deus ao longo de sua vida. É
provável ainda que esse tempo de sua vida representasse o auge de seu
reino, com abundância e fartura de todos os lados. Em tudo Davi havia
experimentado a superabundante providência de Deus. Porém, neste Salmo
ele demonstra uma confiança firme que olha além do que parecem ser
“mimos” divinos. Mas mesmo que não fosse essa a sua condição, Davi
expressa sua fé em Deus de maneira simples, porém profunda.
A paz que Davi desfruta não é uma fuga da realidade. O fato de
expressar seu contentamento não significa que ele se tornou uma pessoa
complacente. Na verdade, o crente Davi confessa uma disposição de
enfrentar as trevas e os inimigos de sua alma por saber que Deus está
com ele. O Salmo 23 revela um amor que não acha satisfação em nenhum alvo material: somente no próprio Senhor[i]
- Suficiência:[ii]
Ao dizer “o Senhor me pastoreia” Davi afirma um relacionamento.
Declarar que Deus tem uma associação com o homem que ouve Sua voz e o
segue. De fato, a permanência nessa relação depende em primeira
instância da direção da voz dessa figura de Pastor que é Deus. Em
segundo lugar depende da minha atitude de resolutamente ouvir e seguir.
É fora de questão que o diferencial na vida cristã é ouvir a voz de
Deus. No salmo, a metáfora nos leva a reconhecermos que somos ovelhas e
como tal, a coisa mais importante é discernir a voz de nosso Pastor e
segui-lo. Isso significa que o essencial da nossa fé é o relacionamento
constante com Deus. Por onde quer que passemos somos guiados pelo
Senhor.
Se formos mais além e se entendemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus; daqueles que são chamados segundo o seu propósito
(Rm. 8:28) seremos livres de grande cegueira e opressão das aflições da
atual existência natural. Pois inclusive os cristãos experimentam
dores, sofrimentos e perdas, carências e privações. Por isso estamos
convictos de que precisamente também estas coisas não faltarão em nossas
vidas.
A suficiência do crente não se restringe aos bens materiais
concedidos por Deus para nossa satisfação – como usualmente declaramos a
partir deste salmo; mas vai até o suprir de necessidades espirituais
que o Senhor dispõe por meio de tribulações e coisas que ele retém de
nós.
É precisamente pela falta desse discernimento que muitos cristãos não
conseguem alcançar um nível de maturidade nesse relacionamento com Deus
e não crescem na fé. Porque olham apenas para as coisas que podem
receber e não também para as coisas que Deus nos tira, não nos dá. Ou
ainda por coisas que julgamos indesejadas.
Quando precisam passar por um momento de menor abundância ou
tribulação, perdem a voz do Pastor. Porque não entendem que o Senhor
também não deixará faltar em nossas vidas a privação, a provação ou o
sofrimento que nos aperfeiçoa na perseverança, a escassez que nos faz
aprender a viver em contentamento e muitas outras disciplinas
espirituais. Portanto, a bênção e a graça de Deus não devem ser vistas
como limitadas às situações corriqueiras. Mas para muito além delas (Fp
4.11-13).
A abundância material pode nos ensinar a gratidão, o domínio próprio,
a humildade e a generosidade ao invés da falsa segurança, da soberba e
da indiferença (ver Pv 30.8b-9).
Como ovelhas, o caminho de Deus pode parecer incompreensível, difícil
e a jornada longa. Mas o Senhor conhece o caminho, Ele é o Pastor. Ele
sabe exatamente por onde nos conduzir para nos levar até a restauração
de nossa alma (v. 3a) para tão-só confiarmos, ouvirmos e seguirmos a Sua
voz.
Portanto, “guia-me pelas veredas da justiça” não se refere ao nosso
caminhar, mas ao caminho pelo qual Deus nos conduz. Uma ovelha não tem
performance diante de seu pastor. Como um animal indefeso e de visão
curta, quando ela tenta fazer algo pelo próprio esforço ela se desvia e
se perde. Da mesma maneira o cristão vive pela fé no Filho de Deus e
pela condução do Espírito de Deus (Rm 8.14; Gl 5.25). O caminho da
retidão é dele e ele nos guia. A justiça vista na manifestação da sua
salvação, que ele o faz por amor de seu nome, também é dele (cf. Ez
36.22-32).
É por esse motivo que o bordão se faz necessário para colocar a
ovelha de volta no caminho quando ela se desvia – seja tentando
estabelecer seu próprio caminho seja deixando de ouvir a voz do pastor.
Pois fora desse caminho a ovelha está entregue à própria sorte e à mercê
do lobo.
- Segurança
Ainda que passemos por momentos áridos, vales escuros e perigos, se
realmente conhecemos a voz do nosso Pastor, quem ele é e o que faz por
amor do seu nome, sempre teremos a certeza dita por Davi: “tu estás
comigo”.
Davi exprime sua convicção de que o Senhor jamais deixará suas
ovelhas desamparadas e perdidas. Ele, como pastor que fora, sabe muito
bem que um verdadeiro pastor zela pelo seu título ao pastorear e
proteger o rebanho. Deus pastoreia e guia os seus não meramente por
nossa condição ou qualquer outro motivo, mas por quem ele é de fato. É
exatamente por isso que todas as ovelhas do Senhor podem experimentar
grande segurança. Ele é Pastor: está em sua essência o amor dispensado
às suas criaturas.
O foco não está em nós. O fundamento dessa relação de fé reside no
caráter de Deus, o qual em tudo o que faz é “por amor do seu nome” ou
“por amor do seu título”. Por isso, ele sempre está presente. Mesmo em
vales tenebrosos ali Deus está. A certeza de que nenhum temor tomará
conta da sua vida demonstra a plena confiança que Davi tinha mesmo no
abismo mais profundo, pois vê Deus conduzindo-o. Deus é seu porto seguro
em qualquer situação.
Com o bordão o pastor afastava o que ameaçava a integridade da ovelha
e com o cajado a puxava de volta ou usava de leves batidas para pô-la
no caminho. O salmista poeticamente demonstra que Deus, como verdadeiro
pastor de sua vida faz isso e pode experimentar o conforto que vem do
caráter protetor de Deus.
O Bom Pastor, no entanto, nos escolta durante os momentos tenebrosos
da vida e comumente a proteção pode vir em forma de disciplina. A
disciplina do Senhor é que conduz ao arrependimento. O Senhor como Bom
Pastor vai em busca da ovelha perdida e por ela se alegra. Esse conforto
ou consolo pode advir após um período de tensão, tristeza ou
arrependimento. A referência é à compaixão de Deus, não a do homem.
Portanto, o consolo provém da compaixão de Deus acerca da nossa
condição.
O Senhor Jesus ensinou sobre o arrependimento usando a figura do
pastor que vai em busca da ovelha que se extraviou. As ovelhas perdidas
são aquelas que precisam de arrependimento. No contexto, Jesus se
referia aos publicanos e pecadores em contraste com os fariseus e
mestres da lei que “não necessitavam de arrependimento”. Na verdade,
eles rejeitavam a graça do arrependimento, pois não se consideravam
perdidos, como os demais. Fazendo isso, eles ignoravam a bondade de
Deus. Paulo afirmou que é a bondade de Deus que nos conduz ao
arrependimento (Rm 2.4).
- Salvação
As imagens de pastos, rio e vale – metáforas de uma relação entre o
Guia e o crente (pastor e ovelha) – dão lugar às figuras de mesa, cálice
e casa. Há a representação de uma figura do anfitrião e do hóspede.
Nessa parte do Salmo a ameaça (inimigos) é convertida em triunfo. O
Senhor transforma o mal em bem. O significado pode ser a confirmação de
um vínculo de lealdade mútua, onde o ponto culminante é o sinal da
aliança (cálice). O que nos leva a entender que os convidados não
desfrutam apenas da festa, mas principalmente da presença do Anfitrião.
O preparar aqui usado geralmente designa “dispor em posição de
combate”. Pôr em ordem uma ação militar. Mas o foco da palavra “mesa”
não está no objeto em si, senão no que ela implica, isto é, o banquete
ou refeição. Seu uso metafórico revela a provisão de Deus das
necessidades humanas. Também é a mesa que designa o altar do sacrifício e
os pães da proposição (presença). A palavra hebraica mesa é muito similar à palavra hebraica armas. Alguns estudiosos discutem se não seria essa a palavra pretendida nesse verso ao invés de mesa. Mas creio na inspiração plena da Palavra de Deus. E aceito que a palavra pretendida era mesmo mesa.
Isso pelo fato de entender que Deus não luta com as armas que
poderíamos esperar. Davi sabia disso muito bem. Em todas as suas
vitórias ele via a ação de Deus de maneira graciosa para com seu povo.
Davi geralmente era assaltado pela inveja de seus inimigos quando Deus o
fazia prosperar. Pois as suas vitórias eram consequência de obras
inauditas. A sua primeira e mais notável vitória veio por uma ação que
ninguém esperava. Davi derrotou um guerreiro gigante armado e protegido,
com cinco pedras nas mãos. A força não vinha de suas armas (1 Sm
17.37,45). Em 2 Coríntios 10.4 Paulo afirma que as armas da nossa luta
não são carnais, mas são poderosas em Deus.
Na Nova Aliança a mesa do Senhor (pão e vinho) designa juízo para
aqueles que dela tomam sem discernir sua implicação, mas para os crentes
significa comunhão no Corpo de Cristo. Pois foi pela metáfora da
refeição que Cristo estabeleceu a Nova Aliança no seu sangue. O
sacrifício do seu corpo e derramamento do seu sangue são para os
discípulos de Jesus o meio de salvação. O cálice que o Senhor sorveu foi
da ira de Deus. Para ele o juízo e condenação que eram nossos para que
tenhamos paz com Deus (Rm 5.1, 10). Dessa forma, Deus reconciliou seus
inimigos consigo em Jesus (2 Coríntios 5:19). As armas poderosas de Deus
para destruir seus inimigos foram dirigidas para seu Filho, para que
por meio dele recebêssemos paz (Ef 2.14-17).
Além de reis e sacerdotes, um hóspede bem recebido seria ungido com
óleo. A unção com óleo simboliza pelo menos três principais coisas: A
rica bênção de Deus; a prosperidade; a condição especial de quem
desfruta do favor divino (óleo de alegria cf. Is 61.3; Sl 45.7).
Na maior parte dos usos que não são literais o cálice figura
negativamente o julgamento de Deus. É o cálice da ira de Deus (Jr
25.15). Esse foi o cálice que Cristo sorveu no Getsêmane (Mt 26.39). Por
que Cristo o tomou completamente, o cálice que agora oferece é de graça
e bênção.
Afinal, bondade e misericórdia se relacionam em um mesmo sentido que é
expresso na graça de Deus. Bondade significando o tipo de manifestação
visível dessa graça em prosperidade nas coisas que são relativas a esta
vida. Misericórdia pode ser entendida como a entrega livre de Deus nos
concedendo bênção espiritual em Cristo, isto é, na condição de filhos da
aliança e participantes da graça divina no relacionamento por meio de
Jesus. Significa a fidelidade de Deus à sua aliança. Depois que o
rebanho é chamado e caminha, o pastor vai atrás das ovelhas a fim de que
as desviadas sejam postas de volta no caminho. Literalmente, Deus, como
nosso Pastor, segue em nosso encalço por causa de quem ele é, por causa
de sua lealdade. Apesar de nós.
O “habitarei na Casa do Senhor” pode ser entendido como um retorno à
aliança. O apartar-se do pecado e voltar-se para Deus. O que demonstra
um redirecionamento de seu destino por ocasião da ação misericordiosa de
Deus. A “Casa do Senhor” é sinônimo de seu templo, sua família.
Para sempre significa por prolongados dias sobre a terra.
Essencialmente significa a qualidade dos dias bem vividos, uma vez que o
dom da vida é mais importante que a sua duração. Mas Davi confia que
terá longos dias pois Deus cuida, pastoreia sua vida. Não significando
que com o fim dela neste plano também se extingue a fidelidade de Deus e
seu compromisso de vida conosco (2 Coríntios 5.1).
Conclusão
É assim que no último dia o Supremo Pastor separará as ovelhas dos
bodes. Ele as chamará e elas seguirão porque conhecem a sua voz. Porque
sempre ouviram sua voz e foram conduzidas por ele quis que elas fossem.
Porque andaram após ele.
Afinal, é o que nos levará a habitar na Casa do Senhor para todo o
sempre é a condução da sua bondade e sua misericórdia. A voz do Supremo
Pastor é que nos escoltará até lá. E essa voz de Deus é ouvida através
daquele que é o Bom Pastor, Jesus. Ele é o Bom Pastor que dá a vida
pelas suas ovelhas. É ele a voz que antigamente falou de muitas maneiras
aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nos últimos dias e
definitivamente nos falou através do Filho. O Supremo Pastor e Bispo da
nossa alma.
Portanto, todo o Salmo se concentra no privilégio que Deus nos dá
durante todos os dias desta vida: de ouvirmos sua voz, de o seguirmos e
de desfrutarmos de um relacionamento profundo e leal com ele.
Este Salmo é para cristãos que foram experimentados e provados ao longo de sua vida e jamais deixaram de ouvir a voz de Deus.
Mas é também para cristãos ainda crescendo, para que contemplem a
fidelidade e o cuidado de Deus para com os que ouvem a sua voz, o seguem
e são conduzidos em triunfo.
“Pois o Cordeiro que se encontra no meio do trono os apascentara e os
guiara para as fontes da água da vida. E Deus lhes enxugara dos olhos
toda lagrima” (Ap 7.1 7).
[i] Derek Kidner
[ii] Essa suficiência é expressa nos verbos: me faz repousar, leva-me, refrigera-me e guia-me.
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