Por Hermes C. Fernandes
“Amor à vida”, folhetim que vai ao ar pela Rede Globo em seu
mais nobre horário já caminha para o seu desfecho. Ainda que não tenha alcançado os índices
esplendorosos de “Avenida Brasil”, a novela de Walcyr Carrasco conseguiu chamar
a atenção de um público que tem sido considerado cada vez mais importante para
a emissora: os evangélicos.
O autor recebeu da Vênus platinada a missão de reconquistar
o público que havia debandado, provocando o fracasso de “Salve Jorge” de Glória
Perez.
Deixando de lado questões mercadológicas, “Amor à vida”
trouxe uma trama cujo tema principal delineado ao longo de sua exibição é a
redenção.
De todos os seus personagens, nenhum exemplifica melhor isso
do que Félix, o vilão vivido por Mateus Solano. A “bicha má” roubou a cena, conquistando a admiração do
público, inclusive dos evangélicos. Para isso, Walcyr Carrasco, criado por uma
família evangélica, colocou em seus lábios tiradas cômicas com episódios
bíblicos. Nunca se viu um personagem gay que demonstrasse tanto conhecimento das
Escrituras. Mesmo quem não acompanhou a
novela, divertia-se cada vez que lia alguma dessas tiradas exibida nas redes
sociais. Uma de suas últimas foi: “Eu
devo ter cobrado ingresso para o Sermão da Montanha.”
“Será que eu salguei a santa ceia?”
“Eu devo ter colado chiclete na Santa Cruz!”
“Devo ter feito uma peruca com os cabelos de Sansão!”
“Eu dancei pole dance na cruz!”
“Só posso ter assuado o nariz no Santo Sudário para merecer isso…”
“Será que eu engarrafei as águas do Rio Jordão?”
Quando a audiência já havia se acostumado com suas armações
e estripulias, Félix é desmascarado, sofre um revés e perde tudo. Expulso de
sua mansão, Félix encontra refúgio nos braços de sua ex-babá, a ex-chacrete
Márcia (Elisabeth Savala), com quem vai vender hot-dogs na 25 de março (centro
de comércio popular em São Paulo, equivalente ao Saara no Rio), depois de
deixar a presidência do Hospital San Magno.
A bondade com que a pobretona brega o acolhera fez com que
Félix repensasse sua vida e, aos poucos, se redimisse. O vilão capaz de jogar a
própria sobrinha recém-nascida numa caçamba de lixo agora se tornara tão dócil
a ponto de cuidar da netinha de Márcia.
Depois de flagrá-lo em sua performance como vendedor de hot-dogs, sua mãe, Pilar (Susana
Vieira) resolve trazê-lo de volta ao lar sob a condição de que confessaria suas
armações e restituiria a todos quanto havia defraudado (atitude certamente
inspirada em Zaqueu). Apesar de relutante em admitir a mudança que sofrera,
Félix resolve abrir o coração e revelar em um dos seus mais tensos diálogos com
a irmã Paloma (Paolla Oliveira) e seu cunhado Bruno (Malvino Salvador) o que
provocara a repentina transformação:
“Eu olhava o mundo cheio de ódio. Até que eu
conheci a Márcia... que me acolheu sem fazer perguntas (...) Este gesto de generosidade
me iluminou. O meu coração sempre cheio de sombras e transformou, como na
história dos Miseráveis, alguma coisa aqui dentro.”
Félix cita “Os Miseráveis”, um dos clássicos da literatura
mundial, de autoria de Victor Hugo, e que teria sido indicado por seu filho na
tentativa de apontar-lhe um caminho de redenção. Aliás, um dos méritos da novela é incentivar
os espectadores à leitura. Vários de seus personagens são frequentemente
flagrados lendo algum livro. Jabá à parte, o fato é que o autor demonstra grande preocupação com a formação
intelectual de seus espectadores, o que julgo ser um ponto positivo. Prefiro
merchandising de livros à de bebida alcoólica.
É de se admirar que o autor tenha escolhido justamente a
personagem Márcia como o instrumento de redenção de Félix. Como uma mulher que
passou a maior parte da novela incentivando sua filha a casar-se com um
milionário para se dar bem poderia agora demonstrar por Félix um amor
totalmente desinteressado? E não só isso. Ela mesma foi “redimida” ao receber
em sua casa um desconhecido encontrado na rua, por quem se apaixonou. Gentil,
nome que ela dá ao misterioso desconhecido, é, na verdade, Atílio (Luis Mello),
administrador do hospital, que perdera a memória após um acidente
automobilístico (mais uma das armações de Félix).
A lição que tiramos de tudo isso é que somente o amor
gratuito, que nós, cristãos, chamamos de “graça”, é capaz de redimir o ser
humano. Graça é aquele amor que não espera retorno. Aquilo que Paulo resume tão bem: "Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado" (2 Co.12:15).
É este amor que encontramos revelado plenamente em Jesus de
Nazaré. Diferente dos personagens ambíguos de Walcyr Carrasco, Jesus jamais
cometeu qualquer pecado. Não defraudou ninguém. Não se aproximou de quem quer
que fosse por interesses escusos. Simplesmente, amou por amar. E Sua maior
prova de amor se deu na Cruz, onde verteu Seu sangue inocente para redimir-nos
de nossa maldade endêmica e crônica.
Por maiores que sejam as críticas que evangélicos façam ao
folhetim, o fato é que, encontramos mais do Evangelho nesta trama do que em
muitos sermões que têm sido pregados nos púlpitos por aí. Deveríamos corar de
vergonha por perceber o quão distante estamos da proposta de Jesus.
“Apesar de tudo que eu perdi, acho que ganhei
muito mais com a Márcia.” Quem diria que ouviríamos isso dos lábios de
Félix? Como gostaria de ouvir testemunhos em que, em vez de contar vantagens
obtidas depois de haver se convertido, exporia a disposição de se perder tudo
para ganhar muito mais: a vida plena de sentido ofertada por Cristo. Ou não foi
isso que Paulo fez, deixando-nos exemplo?: “Mas o que para mim era lucro passei a considerá-lo como perda por amor de Cristo; sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como refugo, para que possa ganhar a Cristo” (Fp.3:7-8).
Pior do que salgar a santa ceia é “pisar o Filho de Deus”, “profanar
o sangue da aliança” e “ultrajar ao
Espírito da graça” (Hb.10:29). E é isso que muitos que se apresentam como palatinos
da verdade, da moral e dos bons costumes, têm feito do alto de seus púlpitos.
Que muitas outras “pedras” sigam clamando, já que insistimos
em nos calar. Que este clamor se faça ouvir nas salas de cinema, nos teatros,
nas manifestações populares, e que ecoe dentro dos templos e no coração de todos
os homens. E quem nunca repetiu um desses bordões do Félix, que atire a primeira pedra!
http://www.hermesfernandes.com/2014/01/o-evangelho-segundo-felix.html
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