Se o debate entre cessacionistas e continuístas se 
resumisse apenas a questões terminológicas, talvez a gente tirasse de 
letra. Mas não é. Tudo bem. Vamos considerar por ora as terminologias. O
 que configura exatamente as duas perspectivas? Talvez a resposta mais 
convencional seja a de que o cessacionista é aquele que crê que certos dons espirituais e extraordinários (miraculosos) operaram na igreja somente na era apostólica, e que os mesmos cessaram definitivamente até o final do primeiro século; ao passo que o continuísta
 é aquele que crê que todos os dons existentes no Novo Testamento, 
miraculosos ou não, ainda continuam sendo derramados pelo Espírito até 
que Cristo volte. Satisfeitos? Eu não. Aliás, tenho enormes dificuldades
 com certas terminologias. Em muitos casos elas não dizem muita coisa.
[Onde começa um e onde termina o outro?]
Apesar do “x” que coloca as duas perspectivas em extrema oposição no título deste post, penso que seja mais razoável falarmos em “cessacionismo e continuísmo”.
 Isto porque, em minha opinião, todo cessacionista é um continuísta 
potencial, e vice-versa. Antes dos “fiscais da ortodoxia alheia” (adorei
 essa, Gaspar!) me acusarem de “traidor da Confissão” e coisas do tipo, 
vou dar aqui um belo exemplo daquilo que eu chamaria de “continuísmo 
cessacionista”; exemplo este baseado no conceito que nós, reformados em 
geral, temos da tarefa da pregação. Veja o que diz Paulo Anglada, um dos mais respeitados teólogos reformados do Brasil:
A autoridade da pregação no Novo Testamento se fundamenta na comissão do pregador e depende da sua fidelidade à mensagem. Algumas passagens do Novo Testamento e a própria terminologia empregada indicam que, na qualidade de arauto, o pregador é um porta voz de Cristo, que sua pregação deve ser recebida como Palavra de Deus, e sua voz equiparada à voz de Cristo. […] Deveriam esses textos [no caso, Mt 10.17;20; 28.20; 2 Co 2.17; e 1 Ts 2.9,13] ser interpretados como casos particulares, relacionados apenas à inspiração apostólica; ou em termos mais amplos, com relação à autoridade da pregação dos ministros da Palavra? Algumas passagens [no caso, Lc 10.16; Rm 10.14; e Hb 1.1-2; 2.1-3; 3.7,8,15; 4.7; 12.25; 13.7-8] parecem apontar para a segunda possibilidade.(ANGLADA, Paulo. Introdução à pregação reformada – uma investigação histórica sobre o modelo bíblico-reformado de pregação. Knox Publicações, 2005. Pág. 41, 42, 43. Itálicos meus).
Anglada é ainda mais contundente quando, fazendo exegese, se refere à carta aos Hebreus:
Quando, no final da carta, o autor exorta seus leitores a lembrarem-se dos seus guias espirituais “os quais vos pregaram a palavra de Deus” (13.7), mencionando no verso seguinte que “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre”, não estamos autorizados a concluir que na pregação da Palavra de Deus, Cristo faz ouvir a sua voz, exigindo irrestrita obediência dos ouvintes?(Idem. Pág. 43-44).
As
 resoluções de Anglada lembram e muito um dos aspectos do dom de 
profecia no Novo Testamento, que é justamente a explicação e aplicação 
da Palavra à igreja (sobre o que pretendo tratar em outro post, se Deus 
permitir). Mas se você perguntar a um cessacionista se ainda existe 
profetas nos dias de hoje, poucos farão um esforço no sentido de definir
 biblicamente quais eram os atributos dos profetas, bem como o conteúdo 
de suas mensagens. Provavelmente, a resposta para sua pergunta seria um 
apressado e sonoro “não!”. Longe estou de sugerir que Paulo Anglada deva
 ser enquadrado naquilo que falei sobre o “continuísmo cessacionista”, 
visto que ainda não li nada dele sobre o debate em questão. Mas se ele 
ainda não se constitui em unanimidade entre os calvinistas 
cessacionistas e continuístas, talvez Calvino sim. Ou, de repente, não… 
Vejamos:
Onde quer que seja pregado o evangelho, é como se Deus viesse para o meio de nós. […] É certo que se vamos à igreja, não ouviremos apenas um homem mortal falando, mas sentiremos que Deus (por meio do seu poder secreto) está falando à nossa alma; sentiremos que Ele é o professor. […] Deus nos chama para si como se estivesse falando-nos por sua própria boca e pudéssemos vê-lo ali, em pessoa.(CALVINO, João. Sermon on the epistle to the Ephesians. Carlisle, PA; Edinburgh, Scotland: The Banner of Truh Trust, 1562, 1577, 1973, 1979, 1987, 1998. p. 42. Citado por Steven Lawson em A arte expositiva de Calvino. Editora Fiel, 2008. p. 37).
Novamente,
 não me estenderei aqui por já estar preparando um post acerca da 
perspectiva de Calvino quanto à profecia. Embora não seja justo cansar a
 noiva antes do baile, faço questão de adiantar que a pesquisa apenas 
confirmará o mesmo ponto supracitado. 
Mas os 
continuístas também tem lá o seu quê de cessacionismo. E como tem! Um 
exemplo? Simples: pergunte a qualquer continuísta sério se ele realmente
 crê que alguém, por mais cheio que seja (ou esteja) do Espírito, tenha a
 graça de ressuscitar alguém dentre os mortos, como o fez Pedro, por 
exemplo (At 9.40,41); ou então de curar enfermos simplesmente por meio 
de peças de roupas, como aconteceu a Paulo (At 19.12); ou então de 
estender um pedaço de pau e abrir um mar inteiro, como Moisés (Êx 
14.15-31). Tudo bem, o exemplo citado de Moisés (e Paulo, quem sabe…) 
não se trata exatamente de um dom. Mas aqui temos outra confusão, e esta
 é entre dons e milagres. Se você me perguntar se Deus ainda cura doenças eu lhes respondo que “sim”. Mas se você me perguntar se existe alguém com o dom de cura, aí eu devo responder que “não”. Milagres, sim; dom, não necessariamente.
 Aqui ainda cabe outra confusão, e esta se refere aos tipos de milagres 
em si. Se alguém chegar para mim argumentando que podemos tudo porque 
“Jesus mesmo disse que ‘obras maiores do que estas vocês realizarão’”, 
aí eu vou pedir a esse irmão para realizar não menos que a ressurreição 
de algum morto. Entendam bem: a grande questão não é se Deus pode fazer estas
 coisas (abrir o mar, trasladar pessoas para o céu, retroceder a sombra 
do sol em dez graus, ruir as muralhas de Jericó, etc.). Sim, Ele pode! 
Mas a questão é: Ele está fazendo coisas assim nos dias de 
hoje? Pode Deus transportar o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro para São 
Paulo? Visto que é Ele quem domina sobre os montes, claro que sim! Mas 
até que Ele não faça isso, os paulistas deverão se contentar apenas com a
 rede de supermercados homônima. Afora o tom irônico, há ou não certo 
cessacionismo no continuísmo? 
[Mais confusão…]
Mas a confusão criada pela ala tresloucada dos continuístas (a qual eu chamaria de “caosrismáticos”)
 tem feito com que os cessacionistas acabem considerando quase todos os 
continuístas como farinha do mesmo saco.  A julgar pelo trato que alguns
 cessacionistas dispensam aos que pensam diferente deles, inclino-me a 
crer que os reformados continuístas acabam escapando da degola (ou do 
“saco”, como queiram) somente porque ainda são “conservadores” em termos
 de soteriologia. Digo isso porque há, lamentavelmente, cessacionistas 
que chegam ao ponto de considerar os nossos irmãos pentecostais como 
“hereges” e “apóstatas”. E não porque os pentecostais tenham negado a 
divindade de Jesus ou sua ressurreição (como os liberais), mas extamente
 porque negam o que o cessacionismo (pelo menos ala mais 
radical deste) afirma. Desconfio seriamente que essa postura soa como um
 aviso para que os continuístas calvinistas ponham suas barbas de molho.
 
Mas é bom que se diga que certos continuístas 
também pecam pela falta de tato e pelo extremismo ao rotular os outros. 
Por exemplo, Vincent Cheung disse que considera os cessacionistas como 
“deístas práticos” e que, “sem relegá-lo ao nível de heresia”,  vê o 
cessacionismo como uma doutrina “perigosa, vergonhosa e falsa”, que tem 
inflingido “tremendo dano à causa de Cristo, e contribuído para a 
situação lúgubre de alguns setores da igreja por toda a história e nos 
presentes dias”. Cheung ainda diz que “não contribui para uma discussão 
sóbria usar pessoas como Benny Hinn e Kenneth Copeland para determinar 
se a Escritura ensina a continuação dos dons espirituais”, e que “os 
carismáticos poderiam muito bem usar os ateístas para representar os 
cessacionistas, em cujo caso ganhariam o debate imediatamente”. Devo 
concordar com Cheung no que tange a usar como parâmetro para o debate 
líderes carismáticos caóticos, esdrúxulos e explicitamente 
desequilibrados como Benny Hinn e semelhantes. Certamente os “caosrismáticos”
 não representam a ala mais sóbria dos continuístas. “Existem vários 
recursos eruditos que refutam o cessacionismo, e é contra eles que os 
cessacionistas devem responder” [1], completa Cheung. Certíssimo! 
Contudo, discordo totalmente da noção de que o cessacionismo se 
constitui num deísmo prático; que é perigoso, vergonhoso e falso; e que 
tem contribuído para a situação letárgica de alguns setores da igreja ao
 longo dos séculos. Ora, se for assim é justo dizer que os responsáveis 
diretos pelo surgimento dos “Hagins” e “Hinns” da vida são os 
pentecostais. Discordo ainda mais do paralelo desrespeitoso e descabido 
entre cessacionistas e ateus. Então quer dizer que, dentro dessa linha 
de racioncínio, os cessacionistas estariam certos se comparassem a 
teologia pentecostal à salada mística da Nova Era, não é? Embora eu 
entenda Cheung, não justifico sua postura. Ele deveria pelos menos 
reconhecer que nem todo cessacionista é xiita, assim como nem todo 
continuísta é xamã. Um extremo leva a outro.
[Matéria de salvação?]
Além
 disso tudo, outro grande problema é que as partes discutem o assunto 
como se o mesmo fosse matéria de salvação; como se algum ponto 
fundamental do Cristianismo (como as doutrinas da justificação pela fé 
somente, da Encarnação e da ressurreição de Cristo, por exemplo) 
estivesse em jogo. Entendam bem: não estou relegando a pneumatologia
 a um plano inferior dentro da teologia, mas apenas dizendo que esse 
tipo de divergência ao qual estamos nos referindo aqui não torna 
absurdamente heréticas as partes conflitantes, como são absurdamente 
heréticos o sabelianismo, o teísmo aberto e o liberalismo, por exemplo.
 Sustentar o contrário seria o mesmo que dizer que apenas os que 
entendem a eleição é que serão salvos. Quando a coisa vai por esse 
caminho, declino do debate. Já se foi o tempo em que eu arrancava os 
cabelos por essas coisas.
[Conclusão]
Os
 cessacionistas dirão: “fim de papo”. Os continuístas dirão: “to be 
continued…”. Até que Cristo de fato volte, penso que sempre será assim. 
Que seja, mas que haja mais respeito entre as partes! Que cada um 
procure entender a perspectiva alheia e esclareça a sua própria, não 
somente para um melhor entendimento do assunto, mas para que a Verdade 
promova a humildade no seio dos envolvidos. E que a Escritura sempre 
seja, como bem rezam nossos símbolos de fé, o Juiz em tudo. 
Submetamo-nos, pois, ao Espírito que por ela ainda fala. 
Soli Deo Gloria!
http://opticareformata.blogspot.com.br/2011/01/cessacionismo-x-continuismo-grande-e.html
 
 
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