Alderi Souza de Matos
O PAPADO: SUA ORIGEM, EVOLUÇÃO HISTÓRICA E SIGNIFICADO ATUAL
Em 2005, boa parte do mundo
acompanhou com vivo interesse os acontecimentos dramáticos ligados à
morte de João Paulo II e à eleição do seu sucessor, Bento XVI. Qualquer
que seja o entendimento que se tenha a respeito dos líderes supremos do
catolicismo, o fato é que os papas são personagens muito importantes no
mundo atual, ocupam enorme espaço na mídia e suas ações transcendem a
área especificamente religiosa para produzir efeitos no âmbito político e
social. Tais razões, entre outras, justificam o estudo dessa poderosa e
influente instituição.
1. Considerações bíblicas
Do ponto de vista
protestante, o papado não é uma instituição de origem divina, mas
resultou de um longo e complexo processo histórico. As Escrituras não
apontam esse ofício como uma ordenança de Cristo à sua igreja. É verdade
que o Senhor proferiu a Pedro as bem conhecidas palavras: "Tu és Pedro e
sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt 16.18). Todavia, isto
está muito longe de declarar que Pedro seria o chefe universal da igreja
(o primado de Pedro) e que a sua autoridade seria transmitida aos seus
sucessores (sucessão apostólica). As primeiras gerações de cristãos não
entenderam as palavras de Cristo dessa maneira. Tanto é que não se vê em
todo o Novo Testamento qualquer noção de que Pedro tenha ocupado uma
função formal de liderança na Igreja Primitiva. No chamado "Concílio de
Jerusalém", narrado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, isso não
aconteceu, e o próprio Pedro não reivindica essa posição em suas duas
epístolas. Antes, ele se apresenta como apóstolo de Jesus Cristo e como
um presbítero entre outros (1 Pe 1.1; 5.1).
Mais difícil ainda é
estabelecer uma relação inequívoca entre Pedro e os bispos de Roma. Os
historiadores não encontram uma base absolutamente segura para afirmar
que Pedro sequer tenha estado em Roma, quanto mais para admitir que ele
tenha sido o primeiro bispo daquela igreja. Ademais, é um fato bem
estabelecido que não houve episcopado monárquico no primeiro século, no
âmbito do cristianismo. As igrejas eram governadas por colegiados de
bispos ou presbíteros (ver Atos 20.17 e 28; Tito 1.5 e 7).
2. Origens da instituição
Ao mesmo tempo, não se pode
deixar de reconhecer que ainda na Igreja Antiga os bispos de Roma
alcançaram grande preeminência, que o papado em muitas ocasiões prestou
serviços crucialmente relevantes à Igreja e à sociedade e que muitos
papas foram homens de grande piedade, integridade moral, saber teológico
e habilidade administrativa. Ao longo dos séculos, muitos dos
principais eventos da história do cristianismo nas áreas da teologia,
organização eclesiástica e relações entre a Igreja e a sociedade tiveram
conexão com a instituição papal. Originalmente, a palavra grega papas
ou a latina papa foi aplicada a altos oficiais eclesiásticos de todos os
tipos, especialmente aos bispos. A partir de meados do quinto século
passou a ser aplicada quase que exclusivamente aos bispos de Roma. Foram
múltiplos e complexos os fatores que levaram ao reconhecimento de que
esses bispos detinham autoridade suprema sobre a Igreja ocidental.
Em primeiro lugar, há que se
destacar a importância crescente da igreja local de Roma desde o
primeiro século. O livro de Atos dos Apóstolos termina com a chegada de
Paulo a Roma. O apóstolo aos gentios escreveu a principal de suas
epístolas a essa igreja e no segundo século surgiu uma tradição
insistente de que tanto Paulo como Pedro, os dois apóstolos mais
destacados, haviam sido martirizados naquela cidade. Além disso, já numa
época remota a igreja de Roma tornou-se a maior, a mais rica e a mais
respeitada de toda a cristandade ocidental. Outro fator que contribuiu
para a ascendência da igreja romana e do seu líder foi a própria
centralidade e importância da antiga capital do Império Romano. Ao
contrário da região oriental, em que várias igrejas (Alexandria,
Jerusalém, Antioquia e Constantinopla) competiam pela supremacia em
virtude de sua antiguidade e conexões apostólicas, no Ocidente a igreja
de Roma desde o início foi praticamente a líder inconteste. Outrossim, a
partir de Constantino muitos imperadores romanos fizeram generosas
concessões àquela igreja, buscaram o conselho dos seus bispos e
promulgaram leis que ampliaram a autoridade dos mesmos.
Outro elemento importante é
que desde cedo a igreja romana e os seus líderes reivindicaram, direta
ou indiretamente, certas prerrogativas especiais. No final do primeiro
século (ano 96), o bispo Clemente enviou em nome da igreja de Roma uma
carta à igreja de Corinto para aconselhá-la e exortá-la quanto a alguns
problemas que a mesma estava enfrentando. Um século depois, o bispo
Vítor (189-198) exerceu considerável influência na fixação de uma data
comum para a Páscoa, algo muito importante face à centralidade da
liturgia na vida da Igreja. As consultas entre outros bispos e Roma
também datam de uma época antiga, embora a primeira decretal oficial
(carta normativa de um bispo de Roma em resposta formal à consulta de
outro bispo) só tenha surgido em 385, com o papa Sirício. Por volta de
255, o bispo Estêvão utilizou a passagem de Mateus 16.18 para defender
as suas idéias numa disputa com Cipriano de Cartago. E Dâmaso I
(366-384) tentou oferecer uma definição formal da superioridade do bispo
romano sobre todos os demais.
3. Alguns papas notáveis
Essas raízes da supremacia
eclesiástica romana foram alimentadas pelas atividades capazes de muitos
papas. No quinto século, destacou-se sobremaneira a figura de Leão I
(440-461), considerado por muitos "o primeiro papa". Leão exerceu um
papel estratégico na defesa de Roma contra as invasões bárbaras e
escreveu um importante documento teológico sobre a pessoa de Cristo (o
Tomo) que exerceu influência decisiva nas resoluções do Concílio de
Calcedônia (451). Além disso, ele defendeu explicitamente a autoridade
papal, articulando mais plenamente o texto de Mateus 16.18 como
fundamento da autoridade dos bispos de Roma como sucessores de Pedro.
Seu sucessor Gelásio I (492-496) expôs a célebre teoria das duas
espadas: dentre os dois poderes legítimos que Deus criou para governar
no mundo, o poder espiritual - representado pelo papa - tinha supremacia
sobre o poder secular sempre que os dois entravam em conflito.
O apogeu do papado antigo
ocorreu no pontificado do notável Gregório I ou Gregório Magno
(590-604), o primeiro monge a ocupar o trono papal. Sua lista de
realizações é impressionante. Ele supervisionou as defesas romanas
contra os ataques dos lombardos, realizou complicadas negociações com o
imperador bizantino, saneou as finanças da Igreja e reorganizou os
limites e responsabilidades das dioceses ocidentais. Ele foi também um
dedicado estudioso das Escrituras: suas exposições bíblicas,
especialmente um comentário do livro de Jó, foram muito lidas em toda a
Idade Média. Seus escritos sobre os deveres dos bispos deram forte
ênfase ao cuidado pastoral como uma atividade prioritária. Ele reformou a
liturgia, regularizou as celebrações do calendário cristão e promoveu a
música sacra ("canto gregoriano"). Finalmente, Gregório foi um grande
promotor de missões, enviando missionários para vários centros
estratégicos do norte e do oeste da Europa e expandindo a área de
jurisdição do papado.
Um momento especialmente
significativo na evolução do papado ocorreu no Natal do ano 800, quando o
papa Leão III coroou Carlos Magno como Sacro Imperador Romano. A esta
altura, a complexa associação dos elementos citados (e outros mais)
havia criado uma situação na qual o bispo romano era amplamente
considerado o principal personagem eclesiástico do Ocidente, bem como o
representante do cristianismo ocidental junto ao Oriente. Algumas
décadas antes, o pai de Carlos Magno havia cedido à Igreja os amplos
territórios do centro e norte da Itália que vieram a constituir os
estados pontifícios. Isso fez dos papas governantes seculares como os
demais soberanos europeus. Por vários séculos, os papas teriam um
relacionamento estreito e muitas vezes altamente conflitivo com esses
governantes. Mas a sua autoridade como líderes máximos da Igreja
Ocidental não seria questionada.
4. Decadência e renovação
O papado também teve seus
períodos sombrios, marcados por imoralidade e corrupção. Um desses
períodos ocorreu entre o final do século IX e o início do século XI,
quando a instituição papal foi controlada por poderosas famílias
italianas. A história revela que um terço dos papas dessa época morreu
de forma violenta: João VIII (872-882) foi espancado até a morte por seu
próprio séquito; Estêvão VI (885-891), estrangulado; Leão V (903-904),
assassinado pelo sucessor, Sérgio III (904-911); João X (914-928),
asfixiado; e Estêvão VIII (928-931), horrivelmente mutilado, para não
citar outros fatos deploráveis. Parte desse período é tradicionalmente
conhecida pelos historiadores como "pornocracia", numa referência a
certas práticas que predominavam na corte papal.
A partir de meados do século
XI, surgiram vários papas reformadores que procuraram moralizar a
administração da Igreja, lutando contra vários males que a assolavam. O
mais notável foi Hildebrando ou Gregório VII (1073-1085), que se
notabilizou por sua luta contra a simonia, ou seja, o comércio de cargos
eclesiásticos, e ficou célebre por sua confrontação com o imperador
alemão Henrique IV. Ele escolheu como lema do seu pontificado o texto de
Jeremias 48.10: "Maldito aquele que fizer a obra do Senhor
relaxadamente". Todavia, o ápice do poder papal ocorreu no pontificado
de Inocêncio III (1198-1216), considerado o papa mais poderoso de todos
os tempos, aquele que, mais do que qualquer outro, concretizou o ideal
da "cristandade", ou seja, uma sociedade plenamente integrada sob a
autoridade dos reis e especialmente dos papas. Ele foi o primeiro a
utilizar o título "Vigário de Cristo", ou seja, o papa era não somente o
representante de Pedro, mas do próprio Senhor. Seus sucessores
continuaram por algum tempo a fazer ousadas reivindicações de autoridade
sobre toda a sociedade, sem, contudo, transformá-las em realidade como o
fizera Inocêncio.
5. O fim do período medieval
Novo período de declínio e
desmoralização do papado ocorreu no século XIV e início do século XV.
Primeiro, os papas residiram na cidade de Avinhão, ao sul da França, por
mais de setenta anos (1305-1378), colocando-se sob a influência dos
reis franceses. Esse período ficou conhecido como "o cativeiro
babilônico da Igreja". Em seguida, por outros quarenta anos (1378-1417),
houve dois e finalmente três papas simultâneos (em Roma, Avinhão e
Pisa), no que ficou conhecido como "O Grande Cisma". Essa situação
embaraçosa foi sanada por vários concílios reformadores, especialmente o
de Constança, que reivindicaram autoridade igual ou mesmo superior à
dos papas. Em reação, estes reafirmaram ainda mais enfaticamente a sua
autoridade suprema sobre a Igreja.
O final do século XV e início
do século XVI testemunhou o pontificado dos chamados "Papas do
Renascimento", os quais, ao contrário de muitos de seus predecessores ou
sucessores, tiveram escassas preocupações espirituais e pastorais. Como
o papa Alexandre VI (1492-1503), o espanhol Rodrigo Borja dedicou-se
prioritariamente a promover as artes e a embelezar a cidade de Roma;
Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro, comandando pessoalmente o
seu exército; e Leão X (1513-1521) teria dito ao ser eleito: "Agora que
Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo". Foi ele quem despertou a
indignação do monge agostiniano Martinho Lutero ao autorizar uma venda
especial de indulgências na Alemanha para concluir as obras da Catedral
de São Pedro. O resultado dessa indignação é conhecido de todos.
6. Os papas da Contra-Reforma
A Reforma Protestante do
século XVI despertou a cúpula da Igreja Católica do estado de letargia
espiritual e omissão pastoral em que se encontrava. A reação católica
teve duas manifestações complementares. Por um lado, Roma empenhou-se em
combater o novo movimento, detendo o seu crescimento e procurando
suprimi-lo onde fosse possível, como aconteceu na Espanha e na Polônia.
Esse esforço recebeu o nome de "Contra-Reforma". Por outro lado, a
Igreja Romana, consciente das distorções espirituais e morais apontadas
pelos reformadores, fez uma autocrítica rigorosa e um esforço sério no
sentido de corrigir os seus erros, aperfeiçoar a sua estrutura e
explicitar melhor a sua fé. Esse aspecto é denominado pelos
historiadores de "Reforma Católica". Nos dois esforços, os papas tiveram
uma atuação destacada.
Até o início da década de
1530, o trono pontifício continuou a ser ocupado por homens
excessivamente envolvidos em questões seculares e políticas. Essa
situação mudou quando Alessandro Farnese tornou-se o papa Paulo III
(1534-1549). Farnese nomeou uma comissão de cardeais que avaliou a
situação da Igreja e propôs medidas saneadoras, entre elas que o papado
se concentrasse nas suas tarefas espirituais e deixasse em segundo plano
a preocupação com o poder, a opulência e a dignidade terrena. Outras
duas grandes realizações de Paulo III foram a aprovação formal da nova
ordem dos jesuítas ou Companhia de Jesus (1540) e a convocação do
Concílio de Trento (1545-1563).
Esse famoso Concílio afastou
definitivamente qualquer possibilidade de conciliação com os
protestantes. Desde então, o catolicismo conservador e militante tem
sido designado como "tridentino" (de Trento). Entre as suas muitas e
importantes resoluções, o concílio reafirmou o papel dominante dos papas
na vida da Igreja. Outros destacados pontífices da era de Trento foram
Giovanni Pietro Caraffa (Paulo IV, 1555-1559) e Giovanni Angelo Medici
(Pio IV, 1559-1565). Este último tem seu nome ligado a uma importante
declaração de fé católica, o Credo de Pio IV ou Profissão de Fé
Tridentina, que deve ser afirmada por todos os convertidos ao
catolicismo. Esses papas reformadores contribuíram decisivamente para
tornar a Igreja Católica uma instituição mais coesa, organizada e
disciplinada, bem como dotada de uma clara identidade doutrinária. Um
fato revelador é que por mais de trezentos anos nenhum outro grande
concílio seria convocado até o Vaticano I.
7. Tensões entre Igreja e Estado
Nos séculos XVII e XVIII, as
antigas ligações entre a Igreja Católica e as autoridades seculares
continuaram a criar problemas para os papas. O Concílio de Trento
contribuiu para a centralização do poder no papado e isso não foi bem
recebido em muitas partes da Europa devido ao crescente nacionalismo e
ao absolutismo real. A oposição ao conceito de uma Igreja centralizada
sob a autoridade papal recebeu o nome de "galicanismo", por haver se
manifestado mais fortemente na França, a antiga Gália. Assim, somente em
1615 os decretos de Trento foram promulgados nesse país. Até mesmo
dentro da Igreja houve galicanos, isto é, aqueles que acreditavam que a
autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Por outro
lado, os defensores da autoridade suprema dos papas foram chamados de
"ultramontanistas", porque buscavam essa autoridade "além das montanhas"
(os Alpes). Outro golpe recebido pelo poder papal foi a supressão da
ordem dos jesuítas, um poderoso instrumento das políticas pontifícias.
Após ser expulsa de Portugal, Espanha e França, bem como de suas
colônias latino-americanas, a Sociedade de Jesus foi dissolvida em 1773
pelo papa Clemente XIV. Assim, ironicamente, enquanto os papas insistiam
na sua jurisdição universal, eles estavam de fato perdendo poder e
autoridade.
Um golpe ainda mais
devastador contra o papado foi desferido pela Revolução Francesa (1789).
Desde o início houve um profundo conflito entre a Igreja e o ideário
republicano da Revolução. Desse modo, logo que tomou o poder, o novo
governo procurou enfraquecer o papado e suprimir a Igreja na França.
Dois papas da época sofreram bastante nas mãos do novo regime. O
primeiro foi Giovanni Angelo Braschi ou Pio VI (1775-1799). Em 1798, o
exército francês ocupou Roma, proclamou uma república e declarou que o
papa não mais era o governante temporal da cidade. Pio VI morreu no ano
seguinte, virtualmente como prisioneiro dos franceses. Seu sucessor,
Barnaba Chiaramonte, eleito papa Pio VII (1800-1823), inicialmente foi
deixado em paz. Todavia, em 1808 Napoleão tomou a cidade de Roma e o
papa foi feito prisioneiro por vários anos, até a queda do soberano
francês em 1814. Pouco depois de retornar a Roma, Pio VII restaurou a
Sociedade de Jesus.
8. O mais longo pontificado
A memória da Revolução
Francesa reforçou o conservadorismo político e teológico dos papas e sua
conseqüente oposição às idéias republicanas e democráticas que viriam a
ser cada vez mais amplamente aceitas no mundo ocidental. Essa atitude
alcançou a sua expressão máxima no cardeal Giovanni Maria
Mastai-Ferretti, que, como papa Pio IX, teve o mais longo pontificado da
história (1846-1878). Pio IX enfrentou um novo problema que foi o
nacionalismo italiano e a luta pela unificação da Itália, até então
subdividida em muitos principados, entre os quais estavam os antigos
estados pontifícios. Um desses líderes nacionalistas foi Giuseppe
Garibaldi, que se casou com a brasileira Anita Garibaldi. Em 1870, as
tropas do novo Reino da Itália tomaram os estados papais e assim chegou
ao fim o poder temporal dos papas, que havia atingido o seu auge no
pontificado de Inocêncio III, no século XIII.
Ao mesmo tempo em que perdia o
seu poder político, Pio IX acentuou fortemente as suas prerrogativas na
área religiosa. Sua ousadia tornou-se patente quando, através da bula
Ineffabilis, proclamou o dogma da imaculada concepção de Maria (1854).
Com isso, ele foi o primeiro pontífice a definir um dogma por si mesmo,
sem o apoio de um concílio. Dez anos depois, Pio promulgou a encíclica
Quanta cura (1864) e seu famoso apêndice, o Sílabo de Erros. Suas
oitenta proposições condenaram explicitamente, entre outras coisas, o
protestantismo, a maçonaria, a liberdade de consciência, a liberdade de
culto, a separação entre a Igreja e o Estado, a educação leiga e, em
geral, o progresso e a civilização moderna. Sua última grande realização
foi o Concílio Vaticano I (1870), o qual, através do decreto Pastor
aeternus, proclamou o controvertido dogma da infalibilidade papal. Essa
infalibilidade ocorreria quando o papa fala "ex cathedra", isto é, no
exercício oficial do seu cargo, definindo questões de fé e moral. Não
por coincidência, isso ocorreu no mesmo ano em que a Itália anexou os
estados pontifícios.
9. Entrando no século XX
A Igreja Católica e seus
pontífices começaram lentamente a aceitar o mundo moderno com o papa
Leão XIII (1878-1903). Embora ainda marcadamente conservador, a ponto de
declarar na bula Immortale Dei que a democracia era incompatível com a
autoridade da Igreja, ele deu uma série de passos construtivos no
relacionamento com diversos governos europeus. Sua realização mais
notável foi a encíclica Rerum novarum (1891), na qual expressou o
pensamento social da Igreja e fez uma corajosa defesa dos direitos dos
trabalhadores no contexto da revolução industrial e do capitalismo em
expansão.
Um período especialmente
conturbado para a Igreja Católica e para os seus líderes foi a época das
duas guerras mundiais. Em sua repulsa do comunismo anti-religioso e
ateu, e em sua preocupação com a defesa dos interesses da Igreja, os
pontífices do período acabaram estabelecendo fortes laços com regimes de
extrema direita em diversos países da Europa. Em 1929, Pio XI
(1922-1939) assinou uma concordata com o ditador fascista Benito
Mussolini, o Tratado de Latrão, mediante a qual foi criado o Estado do
Vaticano. Ele também apoiou o regime ditatorial de Francisco Franco na
Espanha. Mais problemática foi a concordata com Adolf Hitler em 1933,
vista por muitos observadores internacionais como uma aprovação tácita
do regime nazista. Todavia, em 1937, Pio XI publicou a encíclica Mit
brennender Sorge ("Com viva ansiedade"), contendo severas críticas ao
nacional-socialismo.
Seu secretário de estado, o
cardeal Eugenio Pacelli, sucedeu-o no trono pontifício como papa Pio XII
(1939-1958), ao mesmo tempo em que eclodia a II Guerra Mundial. Esse
papa tem sido severamente criticado por seu silêncio diante das
atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus, mesmo convertidos
ao catolicismo. No campo doutrinário, ele proclamou o dogma da ascensão
corporal de Maria (1950). Paradoxalmente, esse pontífice conservador
tomou iniciativas que contribuíram para as grandes mudanças que viriam a
acontecer na Igreja após a sua morte. Ele incentivou o uso dos novos
métodos de estudo bíblico através da encíclica Divino afflante Spiritu
(1943), bem como valorizou e estimulou as igrejas localizadas fora da
Europa.
10. O período pós-Vaticano II
Um dos períodos mais
extraordinários da história da Igreja e do papado teve início com a
eleição do idoso cardeal Angelo Giuseppe Roncalli como papa João XXIII
(1958-1963). Convencido da necessidade de uma ampla atualização
(aggiornamento) da Igreja, ele convocou o Concílio Vaticano II,
formalmente instalado no dia 11 de outubro de 1962. Esse importante
Concílio, que teve expressiva participação de bispos do terceiro mundo,
aprovou resoluções sem precedentes nas áreas de renovação litúrgica,
preocupação com os pobres e diálogo interconfessional. As duas últimas
preocupações já haviam sido expressas respectivamente na encíclica Mater
et Magistra e na criação do Secretariado para a Promoção da Unidade
Cristã. O papa seguinte, Giovanni Battista Montini (Paulo VI,
1963-1978), embora mais contido, deu prosseguimento ao Concílio Vaticano
II, no interesse de "construir uma ponte entre a Igreja e o mundo
moderno". A "Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno" foi o
documento mais longo já produzido por um concílio e contrastou
profundamente com certas ênfases do século anterior. Paulo VI também
publicou a controvertida encíclica Humanae vitae (1968), que proibiu aos
católicos o uso dos métodos de controle artificial da natalidade.
A eleição do último papa do
século 20, em 1978, foi um acontecimento não menos momentoso para a
Igreja Católica e para o mundo ocidental. O polonês João Paulo II (Karol
Jozef Wojtyla) foi o primeiro papa não-italiano desde o século XVI. Sua
atuação corajosa contribuiu para a derrocada do comunismo em sua pátria
e no leste europeu. Em 1981, ele sobreviveu a um grave atentado na
Praça de São Pedro. Foi também o papa que mais se deslocou pelo mundo
afora, tendo feito cerca de uma centena de viagens internacionais.
Dotado de sólido preparo intelectual, publicou diversas encíclicas
abordando temas éticos, sociais e teológicos, tais como Redemptor
hominis (1979), Dives in misericordia (1980), Laborem exercens (1981),
Sollicitudo rei socialis (1988), Veritatis splendor (1993), Evangelium
vitae (1995), Ut unum sint (1995) e Fides et ratio (1998). Por outro
lado, representou um recuo conservador em relação aos seus
predecessores, como ficou evidenciado na sua atitude em relação à
teologia da libertação, nas suas interferências diretas em muitas
organizações da Igreja e, em geral, no seu entendimento exaltado da
autoridade papal.
Conclusão
A instituição pontifícia teve
recentemente um momento de grande publicidade com a morte de João Paulo
II e a eleição do seu sucessor, Bento XVI, o influente cardeal alemão
Joseph Ratzinger. A impressionante cobertura da imprensa e as reações
dos líderes políticos e da opinião pública internacional atestam a força
do catolicismo e dos seus pontífices. No seu conjunto, o papado tem
sido uma instituição predominantemente benéfica para a Igreja Católica,
dando-lhe um notável senso de unidade, propósito e identidade. Muitos
pronunciamentos papais sobre temas sociais e éticos têm sido altamente
relevantes em um mundo secularizado e materialista. Suas fraquezas
históricas têm sido o envolvimento político e um estilo de liderança nem
sempre condizente com as normas dadas por Cristo aos pastores do seu
rebanho. Finalmente, é de se lamentar que justamente essa instituição
seja o maior obstáculo para uma maior aproximação entre os cristãos,
visto que a autoridade pontifícia é rejeitada não somente pelos
protestantes, mas pela Igreja oriental, que tem raízes tão antigas e
apostólicas quanto à Igreja latina.
Perguntas para reflexão:
- Quem deve exercer a liderança na Igreja Cristã e como essa liderança deve ser exercida?
- À luz do Novo Testamento, é possível dizer que Cristo instituiu o papado?
- Historicamente, quais têm sido os aspectos positivos e negativos do papado?
- Que comparação se pode fazer entre o catolicismo, com sua unidade institucional e liderança centralizada, e o protestantismo, com sua multiplicidade?
- O modelo da Igreja Ortodoxa Grega, com seus vários patriarcas em pé de igualdade, seria uma alternativa melhor? Por quê?
Sugestões bibliográficas:
- CONGAR, Yves. Igreja e papado: perspectivas históricas. São Paulo: Loyola, 1997.
- DUFFY, Eamon. Santos e pecadores: história dos papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
- GREELEY, Andrew M. Como se faz um papa: a história da eleição de João Paulo II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
- MCBRIEN, Richard P. Os papas: os pontífices: de São Pedro a João Paulo II. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
- SOUZA, José Antonio de C. R. de; BARBOSA, João Morais. O reino de Deus e o reino dos homens: as relações entre os poderes espiritual e temporal na baixa Idade Média, da reforma gregoriana a João Quidort. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
- STURZ, R. J. Papado. Em ELWELL, Walter A. (Ed.). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988-1990. Vol. III, p. 91-95.
http://www.mackenzie.br/6933.98.html
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