ARTIGO TEOLÓGICO
Cristãos Genuínos Podem Ser Possuídos por Demônios?
por Carlos Augusto Vailatti
Bacharel em Teologia pelo Instituto Betel de Ensino Superior (IBES); Mestre em Teologia (com especialização em Teologia Bíblica) pelo Seminário Teológico Servo de Cristo (STSC) e Mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica (em andamento) pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor de Teologia do Novo Testamento no Instituto Betel de Ensino Superior (IBES).
RESUMO
O propósito do presente artigo é discutir do ponto de vista bíblico e teológico um dos assuntos mais polêmicos e controvertidos que existem no meio cristão, a saber, a possibilidade de um cristão genuíno ser possuído por demônios. Buscaremos analisar os pontos de vista favoráveis e contrários à possessão demoníaca de cristãos, bem como, os respectivos argumentos empregados por estas pessoas para legitimarem suas posições teológicas. Além disso, analisaremos alguns dos principais textos bíblicos que são utilizados por algumas pessoas como suporte para a sua crença na possessão demoníaca de cristãos. Por fim, definiremos a identidade do verdadeiro cristão e veremos de que forma isso contribui para o desfecho do nosso assunto.
INTRODUÇÃO
Uma das questões teológicas que mais tem gerado polêmica nos últimos tempos diz respeito à possibilidade ou não de cristãos serem possuídos por demônios. Em última análise, esse tipo de dúvida tem sido provocado ultimamente principalmente por ensinamentos oriundos do chamado movimento da “Batalha Espiritual”, segundo os quais a possessão demoníaca de cristãos é, não somente possível, mas também verificada na prática, isto é, é evidenciada na experiência cotidiana dessas pessoas. A fim de que tenhamos um entendimento mais completo sobre o assunto, iremos ver, de forma geral, como se configura:
1) o pensamento daqueles que defendem a possibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos;
2) o pensamento daqueles que advogam a impossibilidade de cristãos ficarem endemoninhados;
3) o que alguns textos bíblicos tem a nos dizer sobre a suposta possessão demoníaca de cristãos;
4) a identidade do verdadeiro cristão diante de todas as situações aqui colocadas.
I. CRISTÃOS PODEM SER POSSUÍDOS POR DEMÔNIOS
De acordo com um grupo de autores que inclui, por exemplo, Merrill F. Unger, Frank e Ida Mae Hammond, Hal Lindsey, Jessie Penn-Lewis, Rebecca Brown, Valnice Milhomens e Neuza Itioka, dentre outros, o cristão pode sim ficar possuído por demônios.
Bem, mas que argumentos em geral essas pessoas usam em favor de tal tipo de crença? É o que buscaremos compreender nas linhas que seguem.
a) Merrill Frederick Unger
O já falecido autor, Merrill Frederick Unger, em seu livro Biblical Demonology (Demonologia Bíblica) faz diferenciação entre “possessão demoníaca” e “influência demoníaca”. Neste livro, Unger advoga que somente os incrédulos estão sujeitos à possessão demoníaca. Vejamos as suas palavras:
Somente incrédulos estão expostos à possessão demoníaca; [Já] à influência demoníaca, tanto crentes quanto não crentes [estão sujeitos]. No primeiro caso, a personalidade é realmente invadida, o corpo habitado e o controle dominante é obtido; enquanto que no outro caso, o ataque é feito a partir de fora, através de pressão, sugestão e tentação. A própria natureza da salvação do crente, abrangendo a regeneração, a selagem, residência e o ministério cheio do Espírito Santo, colocando-o “em Cristo”, [o que é] eternamente e habilmente executado, é explicação suficiente porque ele [o crente] não é passível a habitação demoníaca. O incrédulo, contudo, está sob “o príncipe das potestades do ar, sob os espíritos que estão trabalhando agora nos filhos da desobediência (Ef 2.2, Weymouth), [conseqüentemente] é pela própria natureza da sua situação de presa a todo o poder satânico e malignidade demoníaca, [que o incrédulo fica sujeito ao ataque demoníaco] tanto de dentro quanto de fora.1
Todavia, tempos mais tarde, ao ler várias cartas de missionários que relatavam supostos casos de possessão demoníaca ocorrendo em cristãos, Unger mudou de opinião e acabou admitindo então a possessão demoníaca em cristãos. O próprio Unger declara:
Em Biblical Demonology (Demonologia Bíblica) [...] a [minha] posição tomada era de que apenas os incrédulos estão expostos ao endemoninhamento.
Porém, através dos anos, várias cartas e relatórios de casos de invasão demoníaca de crentes têm chegado a mim de missionários em várias partes do mundo. Como resultado, em meu estudo sobre a atual explosão do ocultismo, intitulado Demons in the World Today (Demônios no Mundo de Hoje) [...] a confissão é feita livremente de que a posição tomada no Biblical Demonology (Demonologia Bíblica) foi assim entendida, pois a Escritura não resolve claramente a questão.2Devemos fazer, pelo menos, duas observações referentes a estas declarações feitas por Unger:
1) Unger resolve reavaliar a sua posição no que diz respeito à possibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos com base em “várias cartas e relatórios de casos de invasão demoníaca de crentes” que chegaram até ele através de “missionários em várias partes do mundo”. Ora, tais experiências relatadas são por demais subjetivas para servirem de base para uma fundamentação tal como esta.3
2) Além disso, ao dizer que “a Escritura não resolve claramente a questão” dos cristãos poderem ou não ficar endemoninhados, Unger acaba sendo contraditório. Ora, se as Escrituras não são claras com relação à possibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos, logo, como se pode dar crédito a tais “cartas e relatórios” que descrevem pretensas experiências de “invasão demoníaca de crentes”, as quais não possuem comprovação bíblica clara? Tal argumentação é deveras temerária.
b) Frank D. Hammond e Ida Mae Hammond
Além de Unger, o casal Frank D. Hammond e Ida Mae Hammond também defende a posição de que o cristão pode ficar possuído por demônios. Em seu livro que obteve muita popularidade aqui no Brasil, Porcos na Sala, eles dizem:
Neste livro, temos tomado a posição de que os crentes podem ser habitados por demônios. A explicação dessa possibilidade é principalmente baseada, tanto quanto eu possa determinar, num entendimento claro da diferença entre a alma e o espírito. A palavra do Novo Testamento para “espírito” é “pneuma”. Em contraposição ao natural, o espírito é aquela parte do ser humano que tem a capacidade de alcançar e perceber as coisas divinas. [...] A palavra “alma” é “psiquê”. Ela significa as emoções, o intelecto e a vontade. [...] Disso vemos que o Espírito divino passa a habitar no espírito humano na hora da salvação. Os espíritos demoníacos estão relegados à alma e ao corpo do cristão. Os demônios afligem as emoções, a mente, a vontade e o corpo físico, mas não o espírito do cristão. A finalidade da libertação é tirar os demônios transgressores da alma e do corpo, a fim que Jesus Cristo possa reinar também sobre estas áreas.4
Essa posição antropológico-teológica assumida pelo casal Hammond, segundo a qual o ser humano (e, mais particularmente, o cristão) é visto como um ser “tripartido” (composto de “partes” como: corpo, alma e espírito) e que assevera que a possessão demoníaca, quando ocorre no cristão, afeta apenas a sua alma e o seu corpo, mas não o seu espírito, é uma posição extremamente complicada, a qual também não encontra base na Bíblia.
c) Jessie Penn-Lewis
Entretanto, o casal Hammond não está sozinho em seu pensamento. A conhecida escritora do País de Gales, Jessie Penn-Lewis (1851-1927), também já defendia opinião parecida em sua época:
[...] um crente batizado no Espírito Santo e habitado por Deus no recôndito de seu espírito pode ser enganado e vir a admitir a entrada de espíritos malignos em seu ser e ser possuído, em diferentes níveis, por demônios, mesmo sendo em (sic!) seu interior um santuário do Espírito de Deus: Deus agindo em seu espírito e por meio dele e os espíritos malignos trabalhando em seu corpo e mente, ou em ambos, ou por meio deles.5
Ian Howard Marshall, ao comentar sobre a expressão “espírito, alma e corpo” encontrada em 1 Tessalonicenses 5.23, faz algumas observações que vão na contramão do pensamento defendido por Lewis (e também pelos Hammond) de que a alma e o corpo do cristão podem ser invadidos por demônios, mas não o seu espírito. Vejamos o que Marshall diz:
Paulo aqui distingue três aspectos da personalidade do cristão, sua vida em relação com Deus através da parte “espiritual” da sua natureza, da sua personalidade ou “alma”, e do corpo humano mediante o qual age e se expressa. As distinções [entre espírito, alma e corpo] são frouxas, e não sugerem três “partes” do homem que podem ser nitidamente separadas, mas, sim, três aspectos da sua existência. Paulo as alista juntas aqui para enfatizar que é realmente a pessoa inteira que é o objeto da salvação.6
Essa compreensão antropológica integral do cristão esboçada por Marshall parece ser mais equilibrada e sensata, do ponto de vista bíblico, do que a antropologia fracionada defendida pelo casal Hammond e por Lewis.
Aliás, para efeito de melhor compreensão, a proposta dos Hammond e de Lewis pode ser exemplificada pela figura abaixo:
pneu/ma = espírito (pode captar as coisas divinas) Os demônios não podem possuiryuch. = alma (emoções, intelecto e vontade) Os demônios podem possuir sw/ma = corpo (meio de contato com o mundo) Os demônios podem possuir
1 UNGER, Merrill F. Biblical Demonology: a study of the spiritual forces behind the present world unrest. Wheaton, Scripture Press Publications, Inc., 1952, p.100. Os acréscimos entre colchetes são meus.
2 UNGER, Merrill F. What Demons Can Do to Saints. Chicago, Moody Press, 1977, pp.69,70. O acréscimo entre colchetes é meu.
3 Walter A. Henrichsen em seu pequeno, mas importante livro sobre hermenêutica, faz um comentário relevante sobre a relação entre as nossas experiências pessoais e a Bíblia: “As suas experiências pessoais – sejam quais forem – devem ser conduzidas às Escrituras e interpretadas. Nunca o caminho inverso. ‘Porque tive esta experiência, o que se segue tem de ser verdade’ não é sadio procedimento na interpretação da Bíblia”. (Cf. HENRICHSEN, Walter A. Princípios de Interpretação da Bíblia. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1989, p.20).
4 HAMMOND, Frank D. & HAMMOND, Ida Mae. Porcos na Sala. São Paulo, Bompastor Editora, 2000, pp.175,176. Os itálicos são meus.
5 LEWIS, Jessie Penn. Guerra Contra os Santos. São Paulo, Editora dos Clássicos, 2001, p.169.
2 UNGER, Merrill F. What Demons Can Do to Saints. Chicago, Moody Press, 1977, pp.69,70. O acréscimo entre colchetes é meu.
3 Walter A. Henrichsen em seu pequeno, mas importante livro sobre hermenêutica, faz um comentário relevante sobre a relação entre as nossas experiências pessoais e a Bíblia: “As suas experiências pessoais – sejam quais forem – devem ser conduzidas às Escrituras e interpretadas. Nunca o caminho inverso. ‘Porque tive esta experiência, o que se segue tem de ser verdade’ não é sadio procedimento na interpretação da Bíblia”. (Cf. HENRICHSEN, Walter A. Princípios de Interpretação da Bíblia. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1989, p.20).
4 HAMMOND, Frank D. & HAMMOND, Ida Mae. Porcos na Sala. São Paulo, Bompastor Editora, 2000, pp.175,176. Os itálicos são meus.
5 LEWIS, Jessie Penn. Guerra Contra os Santos. São Paulo, Editora dos Clássicos, 2001, p.169.
d) Hal Lindsey
Já a opinião de Hal Lindsey sobre a possessão demoníaca de cristãos busca seguir uma posição de meio-termo. Lindsey diz:
[...] tenho falado a muitos missionários que tiveram que lidar pessoalmente com esses problemas [referentes à possessão demoníaca de cristãos], e devo dizer que parece possível a um cristão ter certo grau de possessão demoníaca.7
Mais adiante, Lindsey conclui o seu pensamento, dizendo que:
[...] um crente pode ficar possesso até certo ponto, embora apenas temporariamente e nunca de maneira tão completa como no caso de um não- crente.8
Esta posição de Lindsey que defende tanto uma graduação quanto uma diferenciação entre a possessão demoníaca ocorrida em um cristão e em um não- cristão simplesmente não encontra nenhum amparo nas Escrituras. Além disso, Lindsey também defende a sua tese sobre a possibilidade do endemoninhamento de cristãos na já citada base da experiência, que, como vimos, é uma base muito subjetiva e frágil.
6 MARSHALL, I. Howard. I e II Tessalonicenses. São Paulo, Edições Vida Nova / Editora Mundo Cristão, 1983, p.194. Os acréscimos entre colchetes são meus.
7 LINDSEY, Hal. Satanás está Vivo e Ativo no Planeta Terra. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1997, pp.143,144. Os acréscimos entre colchetes são meus.
6 MARSHALL, I. Howard. I e II Tessalonicenses. São Paulo, Edições Vida Nova / Editora Mundo Cristão, 1983, p.194. Os acréscimos entre colchetes são meus.
7 LINDSEY, Hal. Satanás está Vivo e Ativo no Planeta Terra. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1997, pp.143,144. Os acréscimos entre colchetes são meus.
e) Rebecca Brown
A ex-médica Rebecca Brown, quem fez e ainda faz muito sucesso no meio do Movimento da Batalha Espiritual, principalmente aqui no Brasil, assim escreve sobre a possibilidade de um cristão ficar endemoninhado:
A Bíblia deixa bem claro que qualquer envolvimento com Satanás abre uma porta na vida da pessoa, deixando-a exposta à influência, poder ou infestação [possessão] demoníaca. Seja ela crente ou não.9
O que chama a atenção nesta declaração, além da autora admitir a possessão demoníaca de crentes, é o fato de Rebecca dizer que o crente (verdadeiro?) pode ter algum “envolvimento com Satanás”! Acredito que se uma pessoa está “envolvida com Satanás” ela pode receber qualquer outro nome, menos o de “crente” ou “cristã”. Isto significa que a compreensão que a autora tem do significado de “crente” não se coaduna com aquilo que a Bíblia relata a esse respeito.
8 LINDSEY, Hal. Satanás está Vivo e Ativo no Planeta Terra, p.145.
9 BROWN, Rebecca. Ele Veio para Libertar os Cativos. Belo Horizonte, Dynamus Editorial, 2000, p.105. O acréscimo entre colchetes é meu.
8 LINDSEY, Hal. Satanás está Vivo e Ativo no Planeta Terra, p.145.
9 BROWN, Rebecca. Ele Veio para Libertar os Cativos. Belo Horizonte, Dynamus Editorial, 2000, p.105. O acréscimo entre colchetes é meu.
f) Valnice Milhomens
A líder da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo, apóstola Valnice Milhomens, afirma o seguinte com respeito à possessão demoníaca de cristãos:
[...] o fato de o nosso corpo ter-se tornado o templo do Espírito Santo não quer dizer que jamais poderá ser ocupado por maus espíritos. [...] Todos quantos se envolvem no ministério de libertação testemunham a manifestação de demônios em cristãos.10
Vemos aqui, novamente, a imensa importância que é dada à experiência pessoal em detrimento do que as Escrituras têm a dizer (se é que têm algo a falar) sobre a possessão demoníaca em cristãos. Observa-se, pois, que o “testemunho” daqueles que se envolvem no ministério de libertação acaba adquirindo contornos de autoridade, chegando, inclusive, a sobrepujar a autoridade escriturística.
g) Neuza Itioka
Finalmente, outra importante defensora da possibilidade do endemoninhamento ocorrer em cristãos é a Dra. Neuza Itioka. Em seu famoso livro, Os Deuses da Umbanda, Itioka diz o seguinte:
[...] haverá a possibilidade de um cristão sincero ser endemoninhado? [...] A conversão, a sujeição a Jesus Cristo, não afugentaria automaticamente todos os demônios? De acordo com a nossa teologia, duas entidades, isto é, o Espírito Santo e o espírito maligno não podem residir no mesmo corpo. Na prática, porém, parece que estamos verificando mais e mais o contrário. Pessoas que se submeteram a Jesus Cristo têm sofrido a invasão de demônios; ou pessoas que se entregaram a Jesus Cristo e que não passaram pela libertação dos espíritos continuam sendo moradas deles.11
Mais adiante, Itioka, ao tentar explicar como se dá essa possessão demoníaca em cristãos, faz uma afirmação deveras confusa e contraditória a esse respeito: Por um lado, devemos evitar a palavra “possessão” para não dar a impressão de que os demônios tomam posse da pessoa, com o sentido de se assenhorear da sua vida. Por outro lado, não devemos equacionar o lugar do Espírito Santo com o que os espíritos podem ocupar na vida dos cristãos. Cristo está no centro da vida do cristão, mas certas áreas da sua vida podem estar sob o domínio de espíritos.12
Além de não ser bíblico, esse tipo de pensamento esboçado pela autora é bastante complicado e confuso. Tento imaginar como Cristo pode ser o “centro” da vida de um cristão, ao mesmo tempo em que certas áreas da sua vida podem estar “dominadas” pelos espíritos?! É muito difícil (para não dizer “impossível”) tentar harmonizar tal declaração. Bem, depois de termos visto brevemente quem são e o que pensam alguns dos principais defensores da possibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos, vejamos agora o que pensam aqueles que possuem uma opinião contrária às já citadas anteriormente.
10 MILHOMENS, Valnice. Batalha Espiritual. (Apostila). São Paulo, Palavra da Fé Produções, 1993, p.53.
11 ITIOKA, Neuza. Os Deuses da Umbanda. São Paulo, ABU Editora, 1988, pp.188,189.
12 Idem, Ibidem, p.190.
II – CRISTÃOS NÃO PODEM SER POSSUÍDOS POR DEMÔNIOS
Segundo as opiniões de Wayne Grudem, B. J. Oropeza, Caio Fábio, Paulo Romeiro e Ricardo Gondim, para citar apenas alguns, o cristão não pode ser possuído por espíritos malignos. Assim como fizemos com o grupo anterior, vamos ver quais são os principais argumentos utilizados por estas pessoas para defender o seu ponto de vista.
a) Wayne Grudem
O teólogo reformado, Wayne Grudem, que encontra certa dificuldade para definir o significado da palavra “possuído”, faz a seguinte declaração no que se refere à possibilidade de um cristão ser possuído por espíritos malignos:
[...] “Será que um cristão pode ser possuído por demônios?”. A resposta depende do significado que se atribui a “possuído”. Como o termo parece não se basear em nenhuma palavra encontrada no Novo Testamento grego, as pessoas podem defini-lo de maneiras diversas [...]. Se “possuído por demônios” significa para elas que a vontade da pessoa está completamente dominada por um demônio, de modo que tal pessoa já não tem capacidade de decidir fazer o bem e obedecer a Deus, então a resposta certamente seria não, pois a Bíblia garante que o pecado não terá domínio sobre nós, já que fomos ressuscitados com Cristo [...].13
Aqui, Grudem, que defende o ponto de vista ortodoxo tradicional da Teologia Reformada, nega a possibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos baseado na doutrina da justificação. Uma vez que a doutrina soteriológica da justificação declara que o cristão foi restaurado à medida da justiça de Deus,14 através de Cristo, logo, não faz sentido aceitar que o cristão justificado possa ser possuído por espíritos malignos.
b) B. J. Oropeza
Outro teólogo, B. J. Oropeza, que partilha da mesma opinião de Grudem no tocante à impossibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos, oferece, porém, uma argumentação mais detalhada em relação a este assunto:
Se os cristãos são batizados no corpo de Cristo e têm o Espírito Santo habitando neles, parece contraditório dizer que aqueles que permanecem fielmente “em Cristo” podem ser possuídos por demônios [...]. Cristo libertou os cristãos do reino das trevas, e em última análise, em nenhum sentido o diabo pode mais tocá- los (Cl 1.13; 1 Jo 4.4; 5.18). Não creio que cristãos cheios do Espírito Santo possam ficar endemoninhados. O que dizer então dos casos comprovados de cristãos possuídos por demônios? Alguns casos podem ser distúrbio mental, enquanto outros casos de opressão demoníaca (ataques) podem ser confundidos com possessão. Outros casos, ainda, podem ser indivíduos inseguros e de ânimo fraco fingindo estar possuídos ou se auto-induzindo a acreditar que estão possuídos para ganhar atenção.15
Em outras palavras, Oropeza está querendo dizer que aqueles que são verdadeiramente convertidos a Cristo, isto é, “são batizados no corpo de Cristo e têm o Espírito Santo habitando neles” não podem ser possuídos por demônios. Esta conversão real e verdadeira do cristão o imuniza contra a penetração de demônios em seu ser, pois “Cristo libertou os cristãos do reino das trevas”.
13 GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo, Edições Vida Nova, 1999, p.345.
14 Confira o verbete JUSTIFICAÇÃO, em: ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã. Rio de Janeiro, Juerp, 1995, p.94.
15 OROPEZA, B. J. 99 Perguntas sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 2000, p.134.
c) Caio Fábio
Caio Fábio, em seu livro intitulado Principados e Potestades, nos oferece seis razões pelas quais ele não acredita na possibilidade da possessão demoníaca acontecer em crentes. Estas razões são mencionadas abaixo em resumo:
1ª razão: o crente é santuário do Espírito Santo. [...] Paulo garante que não há possibilidade de convivência entre Cristo (Rm 8.9) e o maligno (Ef 2.2). “Que harmonia [há] entre Cristo e o maligno?” (2 Co 6.15).
2ª razão: o Espírito Santo é zeloso pelo seu santuário. [...]
3ª razão: o crente é propriedade de Deus. [...] A propriedade é exclusiva. Essa “propriedade” não será loteada e vendida ao diabo.
4ª razão: Jesus é o valente que tomou posse da propriedade. [...] Jesus me fascinou pela sua valentia e coragem diante da cruz. Essa valentia é a mesma no que diz respeito a guardar os seus filhos das investidas do diabo na tentativa de possuí-los. [...]
5ª razão: O Espírito Santo intercede pelos crentes em suas fraquezas. [...] O cristão não é um super-homem, mas é superprotegido graças à intercessão do Espírito Santo nas horas de maior fraqueza e necessidade. [...]
6ª razão: O imutável amor de Cristo garante a segurança. [...] O que nos dá segurança é o fato de o amor ser o de Cristo Jesus. [...] Um filho de Deus jamais ficará possesso por espíritos malignos. Esta é a confiança.16
Essa defesa apaixonada que Caio Fábio faz da impossibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos, baseada nestes seis itens por ele mencionados, leva em conta três elementos principais relacionados a cada uma das Pessoas da Trindade. Nós vemos:
1) o papel do Espírito Santo como habitante da vida do cristão e como seu intercessor (itens 1, 2 e 5);
2) o papel de Cristo como o nosso protetor e como alguém que nos ama (itens 4 e 6) e
3) o papel de Deus Pai como Aquele que nos tem como Sua propriedade exclusiva (item 3). Tais razões são bastante sensatas e biblicamente equilibradas.
d) Paulo Romeiro
O conhecido teólogo e apologista cristão, Paulo Romeiro, em seu interessante livro intitulado Evangélicos em Crise, faz o seguinte comentário referente à possessão demoníaca de cristãos:
[...] a Bíblia não ensina que um cristão pode ficar possesso ou ser habitado por um demônio. Pode, sim, ser atacado, oprimido de várias maneiras por demônios, mas não possuído por eles ou ficar endemoninhado.17
Algumas páginas depois, Paulo Romeiro conclui o seu pensamento com as seguintes palavras:
É totalmente antibíblico expulsar demônio de uma pessoa que nasceu de novo e que vive em Cristo. A Palavra de Deus dá total segurança ao crente fiel, pois o Filho de Deus se manifestou para destruir as obras do diabo (1 Jo 3.8). [...] João disse ainda: “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes, aquele que nasceu de Deus [Deus] o guarda, e o maligno não lhe toca” (1 Jo 5.18). Ora, se o maligno nem pode tocar naquele que é nascido de Deus, como vai habitar nele? Biblicamente impossível.18
Paulo Romeiro, em seus dizeres, assim como Oropeza, admite que o cristão possa ser atacado e oprimido pelo demônio, mas jamais possesso. Além disso, Romeiro, tal como Caio Fábio, se alicerça na segurança de que desfruta o crente em Jesus, o qual lhe assegura total proteção diante das tentativas demoníacas de possuí-lo.
16 FILHO, Caio Fábio D’Araújo. Principados e Potestades. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1997, pp.30-33. O acréscimo entre colchetes é meu.
17 ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em Crise. São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1995, p.127. 18 Idem, Ibidem, p.133. O acréscimo entre colchetes é meu.
e) Ricardo Gondim
Por fim, o pastor e escritor Ricardo Gondim assim se expressa no que concerne ao tema da possessão demoníaca em cristãos:
Que um membro nominal de igreja possa ser possesso, não há qualquer dúvida. Porém, aqueles que já lavaram suas roupas no sangue do cordeiro não podem sucumbir a uma escravidão abjeta como a possessão.19
Notamos nesta declaração de Gondim que, para ele, a questão toda se resume na verdadeira identidade daquele que é possuído. Em outras palavras, para Gondim não basta freqüentar uma igreja para ser cristão, antes, você deve sê-lo em essência. Sendo assim, “cristãos nominais” podem ser possuídos por demônios, mas “cristãos em essência” não.
No momento oportuno, voltaremos a tratar dessa questão sobre a identidade daquele que é possuído com maiores detalhes. Agora, porém, voltemos a nossa atenção para alguns dos principais textos bíblicos que são usados por muitos a fim de poderem comprovar a possessão demoníaca em cristãos.
19 GONDIM, Ricardo. Os Santos em Guerra. São Paulo, Abba Press, 1999, p.167.
III – TEXTOS BÍBLICOS QUE SUPOSTAMENTE MOSTRAM A POSSESSÃO DEMONÍACA DE CRISTÃOS
Existem alguns textos bíblicos que são usados por aqueles que defendem a crença na possessão demoníaca de cristãos. Portanto, veremos quais são os principais textos que são usados para corroborar tal idéia e os analisaremos a fim de entender se eles realmente nos permitem chegar a tal conclusão.
a) Saul
No Antigo Testamento, um dos textos mais utilizados com esse intuito se encontra na perícope de 1 Sm 16.14-23, a qual parece descrever a possessão demoníaca de Saul. Como uma análise detalhada desse texto foge do objetivo proposto por esse breve artigo, me deterei apenas em alguns detalhes extraídos do verso 23, começando pelo seu original em hebraico.
O texto do Antigo Testamento que citaremos a seguir é o do Códice de Leningrado B19A (L), que é um dos mais completos e antigos manuscritos do texto massorético da Bíblia Hebraica (= Antigo Testamento). Aliás, segundo Gérard E. Weil, o Códice L continua sendo “o mais antigo manuscrito do texto completo da Bíblia Hebraica de data conhecida”.20 Além disso, esse manuscrito é visto atualmente como o mais confiável da Bíblia Hebraica tanto por eruditos judeus quanto por eruditos cristãos. Esse texto, juntamente com a massorá e o aparato crítico, aparecem publicados na chamada Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS), que é a edição da Bíblia Hebraica mais usada pelos eruditos e estudiosos na atualidade.Bem, depois dessas breves explicações preliminares, vejamos primeiramente o que o texto de 1 Samuel 16.23 diz no seu original encontrado na Bíblia Hebraica:21
ובכל פעם רוח רעה מאת ה 'תקפו לקח
המלך דוד נבל וניגן להרגיע שאול
הוקל ואת הרוח הרעה עזבה אותו
1 שמואל 16:23
E sucedia quando estava o Espírito de Deus sobre Saul que tomava Davi a harpa e a tocava com a sua mão e alívio para Saul e bem para ele (havia) e se retirava de sobre ele o espírito mau.
Além da Bíblia Hebraica, notemos como a conhecida tradução grega do Antigo Testamento hebraico, datada do III século a.C., a Septuaginta (LXX),22 traduz 1 Samuel 16.23:
Και αυτό συνέβη ότι είναι ένα κακό πνεύμα στο Σαούλ
ότι ο David πήρε την άρπα
και έπαιξε με το χέρι του αναβίωσε και ο Σαούλ,
και ήταν πολύ καλός μακριά από αυτόν
και το κακό πνεύμα
E acontecia que estando um espírito mau sobre Saul
que tomava Davi a harpa
e a tocava com a sua mão
e reanimava Saul e bom ele ficava
e afastava-se dele o espírito mau
Finalmente, citemos também 1 Samuel 16.23 de acordo com a Vulgata,23 a tradução latina do Antigo Testamento hebraico, datada aproximadamente do IV século d.C., feita por São Jerônimo:
igitur quandocumque spiritus Dei arripiebat Saul tollebat David citharam et percutiebat manu sua et refocilabatur Saul et levius habebat recedebat enim ab eo spiritus malus
Então sempre que o Espírito de Deus se apossava de Saul tomava Davi a cítara e a tocava (com) a sua mão e se aliviava Saul e ficava calmo pois se retirava dele o espírito mau
Algumas observações devem ser feitas com relação a estas três versões bíblicas:
Em primeiro lugar, devemos notar que não há consenso entre as três versões sobre a identidade de quem está agindo primeiramente em Saul. A BHS e a Vulgata dizem que é o “Espírito de Deus”. Já a LXX declara que é o “espírito mau”. Nesse caso, como podemos então resolver essa questão? Proponho algumas soluções:
1) Do ponto de vista da lógica, da coerência e do bom senso, a LXX é a versão mais correta, pois, segundo ela, o “espírito mau” que estava sobre Saul é o mesmo que “afastava-se dele”, quando “tomava Davi a harpa e a tocava”. Tal prática (exorcística?) fazia com que Saul ficasse reanimado e se sentisse melhor. Além do mais, a LXX não menciona que o tal “espírito mau” é proveniente de Deus, o que evita um embaraço teológico. Entretanto, embora este ponto de vista seja o mais coerente em seu todo, deve-se fazer, todavia, uma ressalva quanto ao método empregado por Davi para afugentar o espírito mau. Em nenhuma outra parte das Escrituras vemos alguém exorcizar um espírito mau através do toque de uma harpa.24
2) Segundo o ponto de vista cronológico, não se pode ignorar que a BHS retrata o texto original em hebraico, o qual é, por sua vez, o texto mais antigo. Contudo, nos deparamos com uma dificuldade especial ao analisarmos 1 Samuel 16.23 segundo a Bíblia Hebraica. O texto hebraico diz primeiramente que o “Espírito de Deus” estava sobre Saul. Porém, depois, o texto parece identificar o “Espírito de Deus” com o “espírito mau”! Afinal, quem é que está sobre Saul, o Espírito de Deus ou o espírito mau? Como podemos harmonizar uma declaração tão discrepante quanto esta? A solução para esta questão pode ser encontrada no início da perícope, em 1 Samuel 16.14, onde lemos no texto hebraico:
“E o Espírito do Senhor - ורוח ה 'se desviou / se retirou de Saul, - סר מעל שאוe o aterrorizava – ומבועתum espírito mau proveniente do Senhor”.
Em outras palavras, não é o “Espírito do Senhor” quem está sobre Saul conforme o v.23, mas sim “um espírito mau proveniente do Senhor”, de acordo com o v.14. Ou seja, o v.23 deve ser interpretado à luz de seu contexto imediato e, mais particularmente ainda, à luz do v.14. Provavelmente, o copista, ao escrever o v.23, por algum deslize esqueceu de inserir no texto o adjetivo “mau” e a preposição “proveniente de, da parte de, de”, os quais aparecem juntos no v.14. Se tivesse feito isso, então o resultado seria: “E sucedia quando estava o espírito mau proveniente de Deus sobre Saul, que tomava Davi a harpa e a tocava com a sua mão; e alívio para Saul e bem para ele (havia), e se retirava de sobre ele o espírito mau”.25
20 WEIL, Gérard E. In: FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica: introdução ao texto massorético. São Paulo, Edições Vida Nova, 2003, p.25.
21 Baseio-me em: ELLIGER, K. & RUDOLPH, W. (Eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.
22 Baseio-me em: RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.
23 Baseio-me em: JÁNOS II, Pal. Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio. Vaticano. Libreria Editrice Vaticana, 1979.
24 Aliás, as notas musicais “mágicas” extraídas da harpa de Davi encontram eco na saga mitológica de Orfeu. Segundo Bulfinch: “Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, recebeu de seu pai, como presente, uma lira e aprendeu a tocar com tal perfeição que nada podia resistir ao encanto de sua música. Não somente os mortais, seus semelhantes, mas os animais abrandavam-se aos seus acordes e reuniam-se em torno dele, em transe, perdendo sua ferocidade. As próprias árvores eram sensíveis ao encanto, e até os rochedos. As árvores ajuntavam-se ao redor de Orfeu e as rochas perdiam algo de sua dureza, amaciadas pelas notas de sua lira”. (Cf. BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Rio de Janeiro, Ediouro, 1999, p.224).
25 É isso, por exemplo, o que fazem as versões “corrigida” e “atualizada” de João Ferreira de Almeida, ao traduzirem 1 Samuel 16.23.
Entretanto, nos deparamos com outro problema aqui. Como podemos explicar a frase: “o espírito mau proveniente de Deus”? Bem, a religião monoteísta israelita foi a grande responsável por forjar um conceito ambivalente de Deus. Isto é, “se há um único Deus, então tanto o bem como o mal (neste caso, o ‘espírito maligno’) só podem vir dele”.26
3) O aparato crítico da BHS também nos ajuda a compreendermos melhor 1 Samuel 16.23. Segundo essa ferramenta exegética, lingüística e teológica, vários manuscritos hebraicos medievais trazem “mau”, (espírito mau) no lugar de “Deus” (Espírito de Deus), fazendo referência ao fato de que era o “espírito mau” que agia na vida de Saul. Além da LXX, a BHS cita também o Targum de Ônquelos (completado aproximadamente no V século), o qual também adota tal expressão.27
Tendo como base estes breves, mas necessários apontamentos sobre 1 Samuel 16.23, além das informações extraídas do contexto bíblico mais amplo sobre Saul, podemos chegar a algumas conclusões referentes ao nosso tema acerca da possibilidade de cristãos genuínos serem possuídos por demônios:
a) O texto de 1 Sm 16.23, juntamente com outros textos (cf. 1 Sm 18.10; 19.9,10) parece descrever, de fato, o que podemos chamar de “possessão demoníaca” de Saul.
b) Apesar disso, seria um erro grosseiro e anacrônico chamar Saul de “cristão”;
c) Deve ser dito ainda que em nenhum outro lugar das Escrituras vemos alguém praticar algum exorcismo com um instrumento musical ou com a música.
d) Some-se a isso, por fim, o seguinte fato: a Bíblia Hebraica em momento algum descreve Saul como um modelo de pessoa “temente a Deus”, ou “piedosa” e, portanto, “crente”. Muito pelo contrário, o Antigo Testamento descreve Saul como alguém que: foi desobediente a Deus (1 Sm 13.13,14; 1 Sm 15.16-28); foi escolhido como rei pelos homens, e não por Deus, ao contrário do que ocorreu com Davi (compare: 1 Sm 8.1-8 com 1 Sm 16.1-13); viveu cheio de ira e de inveja com relação a Davi (1 Sm 18. 7-17; 19.1-24; 24.1-22; 26.1-25); procurou uma feiticeira, a fim de poder consultá-la (1 Sm 28.1-25) e, por fim, se suicidou (1 Sm 31.4). Diante desses fatos, dificilmente poderíamos chamar Saul de homem “temente a Deus” ou “piedoso”.
Concluindo, não podemos afirmar que Saul era “temente a Deus” e, muito menos, que era “cristão”. Todavia, de acordo com o que vimos acima, ele ficou, de fato, possuído por um espírito maligno algumas vezes.
Saindo do Antigo Testamento e indo em direção ao Novo Testamento, encontraremos mais algumas personagens bíblicas que, de acordo com alguns, eram cristãs, mas foram possuídas por demônios. Vejamos quem são estas pessoas mais de perto:
26 VAILATTI, Carlos Augusto. Legião é o Meu Nome: uma análise exegética, hermenêutica e histórica de Mc 5.1-20. Dissertação de Mestrado em Teologia não publicada, São Paulo, Seminário Teológico Servo de Cristo (STSC), 2009, p.58.
27 Cf. ELLIGER, K. & RUDOLPH, W. (Eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia, p.474.
b) Judas Iscariotes
Ao falar sobre Judas, as Escrituras dizem o seguinte:
“Entrou (ένωσε), porém, Satanás em (σε) Judas […]” (Lc 22.3) e
“entrou naquele (εισήλθαν στο εν λόγω) [isto é, em Judas] Satanás” (Jo 13.27).28
Nestes dois textos encontramos o verbo εγγραφεί, “entrou”, de εισάγετε, “ir ou vir para dentro ou em; entrar”.29 Além disso, encontramos também nas duas passagens a preposição σε, “em, para, em direção a, no meio de”.30
Embora tais vocábulos não sejam os convencionalmente usados para se referir a uma possessão demoníaca no NT, todavia, os textos dão a entender realmente que Judas estava possuído, não por demônios, mas pelo próprio Satanás, o que é um acontecimento sui generis em toda a Bíblia.
Bem, pelo que acabamos de ler, Judas experimentou mesmo uma possessão satânica. Porém, será que podemos dizer que Judas era “cristão”?31
Embora Judas fosse um dos doze discípulos (Mt 10.1-4; Mc 3.13-19; Lc 6.12-16) e tivesse recebido poder de Jesus para expulsar demônios e curar doentes (cf. Mt 10.1ss; Mc 3.13-15), contudo, o próprio Jesus havia feito uma severa advertência quanto ao fato de que muitos “praticantes da iniqüidade” profetizariam, expulsariam demônios e fariam muitas maravilhas (Mt 7.21-23). Além disso, Judas é chamado pelo apóstolo João de κλέφτης, isto é, “ladrão” (Jo 12.6) e Jesus diz que Judas é um διάβολος, “diabo” (Jo 6.70).
Diante disso tudo, acho extremamente difícil dizer que Judas era “cristão” ou que ele era um verdadeiro seguidor de Jesus.
c) Pedro
Há também quem pense que Pedro tenha ficado possuído por demônio ou, no presente caso, pelo próprio Satanás, quando Jesus se dirige a ele nos seguintes termos: {Πάρτε πίσω μου, Σατανά!, ou seja, “Vai para trás de mim, Satanás!” (Mt 16.23). Todavia, esse texto não descreve a possessão demoníaca ou satânica de Pedro, mas sim a sua carnalidade, pelo fato de ter se oposto à crucificação de Jesus (Mt 16.21,22), o que faz dele um adversário (διάβολος/ – “Satanás!” ) nesta situação.32
28 Baseio-me em: ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005.
29 THAYER, Joseph Henry. A Greek-English Lexicon of the New Testament. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1976, p.187.
30 Idem, Ibidem, p.183.
31 Cabe lembrar aqui, antes de tudo, que os discípulos só são chamados pela primeira vez de “cristãos” mais tarde em Antioquia (At 11.26).
32 Cf. ALFORD, Henry. The Greek Testament. Vol.I. (The Four Gospels). Chicago, Moody Press, 1968, p.175.
d) Ananias e Safira
Por fim, há quem diga com veemência que a perícope de Atos 5.1-11 também registra um caso de possessão demoníaca de um cristão. Neste caso, por exemplo, Ananias, o marido de Safira, seria o endemoninhado. A fim de comprovarem a sua tese, os defensores da crença na possibilidade da possessão demoníaca ocorrer em cristãos alegam que Ananias e Safira eram um casal de cristãos e que as palavras de Pedro dirigidas a Ananias: “Ananias, por que encheu Satanás o teu coração?” (At 5.3) significam que Ananias estava endemoninhado. Ora, analisemos o verbo γεμάτη (“encheu”) com maiores detalhes. Tal vocábulo é derivado do verbo grego συμπληρώστε, “fazer pleno, preencher, encher”.33
Segundo Marshall, “a ação de Ananias é atribuída à inspiração de Satanás […]. A expressão encheu o teu coração talvez represente uma expressão idiomática que significa ‘levou-te a ousar’[…]”.34
Sendo assim, Satanás, ao “encher” o coração de Ananias, estava, na verdade, influenciando-o e inspirando-o a mentir com relação à quantia que ele depositaria aos pés dos apóstolos, a qual era oriunda da venda de uma propriedade que lhe pertencia (At 5.1,2). Porém, Satanás apenas inspirou Ananias a mentir aos apóstolos. Ananias não foi possuído por ele. Aliás, se Satanás ou algum demônio estivesse mesmo possuindo a Ananias naquele momento, Pedro o teria expulsado dele, pois o discernimento espiritual que Pedro demonstrou ter com relação à mentira de Ananias e Safira (At 5.1-4) era o mesmo discernimento espiritual que ele tinha (acompanhado do poder que lhe fora outorgado por Jesus), por exemplo, para expulsar demônios (cf. Mt 10.1-4; Mc 3.13-16ss).
Portanto, concluímos o nosso breve comentário sobre Ananias dizendo que o Novo Testamento não nos permite afirmar que ele foi possuído por demônios ou por Satanás, embora ele parecesse ser de fato cristão e tivesse sido influenciado por Satanás no trágico episódio que acabou custando a sua vida e a de sua esposa (cf. At 5.5-10).
33 THAYER, Joseph Henry. A Greek-English Lexicon of the New Testament, p.517.
34 MARSHALL, I. Howard. Atos: introdução e comentário. São Paulo, Edições Vida Nova / Editora Mundo Cristão, 1991, p.109. O primeiro itálico é meu.
IV - A VERDADEIRA IDENTIDADE DO CRISTÃO
Em seu livro Demon Possession & the Christian (A Possessão Demoníaca e o Cristão), o autor, C. Fred Dickason, declara:
Eu estimo que de 1975 a 1987 tenha encontrado pelo menos quatrocentos crentes genuínos que estavam realmente habitados por demônios. Apenas dois dos muitos que aconselhei não eram crentes em Cristo.35
A afirmação de que “quatrocentos crentes genuínos estavam realmente habitados (possuídos) por demônios” é deveras assustadora e merece a nossa atenção. Tal assertiva nos estimula a fazer a seguinte pergunta: O que é ou quem é um “crente (cristão) genuíno”? Baseado no que John Stott escreve no prefácio de sua obra, Cristianismo Básico, proponho a seguinte definição de “cristão genuíno”:
É todo (a) aquele (a) que se entrega de todo coração, mente, alma e vontade, em seu lar e em sua vida como um todo, pessoalmente e sem reservas a Jesus Cristo. É aquele que se humilha diante dEle. É aquele que confia nEle como Salvador e se entrega a Ele vendo-O como Senhor. Além disso, é aquele que assume a posição como membro fiel da Igreja e também como cidadão responsável na comunidade em que vive.36
A meu ver, conhecer a identidade do verdadeiro cristão é simplesmente imprescindível para que possamos responder apropriadamente a pergunta-tema do presente artigo: “Cristãos genuínos podem ser possuídos por demônios?”. Aliás, Oropeza também é da mesma opinião:
A identidade está no âmago da questão. O indivíduo possesso é realmente cristão? Um cristão em Cristo professo pode não ser necessariamente um cristão genuíno (1 Jo 2.19; At 8.9-24; Mt 7.21-23; Lc 6.46). [...] Creio que os convertidos que não confessam e não abandonam pecados ou vícios ocultos em sua vida podem não ser cristãos genuínos. Dizer “creio em Jesus” não é suficiente se o indivíduo deliberadamente permanece preso por hábitos ocultos e pecaminosos. Crer em Jesus significa fazê-lo Senhor de nossa vida (Lc 6.46; Rm 10.9,10; Fp 2.9-11); logo, devemos nos arrepender de nossos pecados e abandoná-los (Lc 13.3; At 2.38; 3.19; Ap 2.5).37
35 DICKASON, C. Fred. Demon Possession & the Christian. Illinois, Crossway Books, 1987, p.187. Os itálicos são meus.
36 Adaptado de: STOTT, John R. W. Cristianismo Básico. São Paulo, Edições Vida Nova, 1991, p.8.
37 OROPEZA, B. J. 99 Perguntas sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual, p.134.
Além de Oropeza, Caio Fábio também tem o mesmo pensamento:
Que crentes nominais ficam possessos [por demônios] não tenho a menor dúvida, pois já tenho visto alguns casos. No entanto, é necessário que se faça diferença entre aparência e essência.38
Tendo em mente essas importantes declarações, bem como, a definição de “cristão” que acabamos de dar acima, creio que já podemos chegar a algumas conclusões bastante diretas e práticas em nosso estudo:
- Conhecedor da Bíblia pode ficar endemoninhado, cristão genuíno não;
- Dizimista pode ficar possuído por demônios, cristão genuíno não;
- Frequentador de igreja pode ficar endemoninhado, cristão genuíno não;
- Líder eclesiástico pode ficar endemoninhado, cristão genuíno não;
- Membro de denominação importante pode ficar possuído por espíritos malignos, cristão genuíno não;
- Participante de congressos e conferências espirituais pode ficar endemoninhado, cristão genuíno não;
- Frequentador assíduo de atividades da igreja pode ficar possesso por demônios, cristão genuíno não;
- Portador do dom de falar em “línguas” pode ficar endemoninhado, cristão genuíno não;
- Enfim, cristão nominal pode ficar possuído por demônios, cristão genuíno não.
38 FILHO, Caio Fábio D’Araújo. Principados e Potestades, pp.29,30. Os acréscimos entre colchetes e os itálicos são meus.
CONCLUSÃO
Finalmente, estamos chegando ao término do nosso artigo.
Em primeiro lugar, vimos que aqueles que defendem a posição de que cristãos podem ser possuídos por demônios baseiam a sua crença:
a) em experiências subjetivas e, portanto, questionáveis;
b) em doutrinas estranhas à Bíblia, como, por exemplo, a que defende que a alma e o corpo do cristão podem ser possuídos por demônios, mas o espírito não;
c) em uma graduação de possessão demoníaca (confundindo “opressão” com “possessão”);
d) em um Jesus que não é perfeitamente capaz de libertar o cristão por completo, quando de sua genuína conversão (pois outros “trabalhos de libertação” são necessários, a fim de concluir a obra “incompleta” e “inacabada” de Cristo);
e) em um entendimento equivocado sobre a identidade do verdadeiro cristão.
Em segundo lugar, vimos que aqueles que defendem a posição de que cristãos não podem ser possuídos por demônios fundamentam a sua opinião:
a) na doutrina bíblica da justificação;
b) na real e total libertação do verdadeiro cristão;
c) na perfeita proteção e segurança de que desfrutam os cristãos, como alvos do amor de Cristo;
d) em uma compreensão adequada sobre a identidade do verdadeiro cristão.
Em terceiro lugar, verificamos que alguns dos textos bíblicos que supostamente descrevem a possessão demoníaca de cristãos carecem de um fundamento exegético, lingüístico e teológico mais aprofundado. Por um lado, pudemos perceber que algumas personagens bíblicas vistas muitas vezes como “tementes a Deus”, “piedosas” e até mesmo “cristãs” não eram realmente assim. Por outro lado, notamos que cristãos verdadeiros foram, de fato, influenciados e inspirados pelas forças das trevas, sem, porém, serem possuídos por demônios. Além disso, nos textos bíblicos que analisamos notamos a total ausência de uma terminologia exorcística própria referente à possessão demoníaca. Não encontramos, por exemplo, o verbo daimonizomai, “estar possuído por um demônio ou espírito maligno”.39
Por fim, em quarto e último lugar, pudemos observar que conhecer a identidade do verdadeiro cristão é simplesmente fundamental para resolver toda a questão. Uma vez que possuímos todas essas informações, nos tornamos cientes do fato de que um cristão verdadeiro pode ser oprimido, influenciado, inspirado, induzido, tentado e até mesmo atacado por demônios, mas jamais pode ser possuído por eles. O refrão daquela música “Xô Satanás”, interpretada pelo grupo Asa de Águia em ritmo de carnaval, diz o seguinte: “Na casa do Senhor, Não existe Satanás, Xô Satanás! Xô Satanás!”. Na “Casa do Senhor” Satanás pode até existir sim, mas ele jamais poderá existir na vida de “cristãos genuínos”, possuindo-os através de seus demônios.
39 LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon. (Founded Upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon). Oxford, Oxford University Press, 1889, p.171.
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por Carlos Augusto Vailatti
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