Em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento. (Colossenses 2:3)

Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por essas coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.(Efésios5:6)
Digo isso a vocês para que não deixem que ninguém os engane com argumentos falsos. (Colossenses 2:4)

6 de janeiro de 2018

A Relação entre Dons Espirituais e Talentos Naturais




Que relação há entre dons espirituais e talentos naturais? Algumas poucas pessoas responderão imediatamente: “Nenhuma”, outras têm falado e escrito como se não houvesse diferença digna de nota entre eles. Parece-me que estas duas posições são extremadas. Deve haver alguma diferença, na verdade uma diferença clara, porque o Deus da criação, por um lado, em sua providência, dá talentos a todos os homens e mulheres (tanto que falamos que algumas pessoas têm um “dom” artístico ou um “dom” para a música, ou têm uma personalidade muito “dotada”) e, por outro, o Deus da nova criação, a Igreja, confere “dons espirituais” somente às pessoas redimidas. São os dons espirituais que diferenciam os membros do Corpo de Cristo, pois cada membro do Corpo tem um dom ou função. Mesmo assim, devemos ter cautela em deduzir disto que não há nenhum vinculo entre dons e talentos. Diversas razões devem levar-nos a pensar assim.

A primeira é que o mesmo Deus é o Deus da criação e da nova criação, e ele opera sua vontade perfeita através das duas. Esta vontade divina é eterna. Deus disse a Jeremias, por ocasião do seu chamado ao ofício profético: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e antes que saísses da madre, te consagrei e te constituí profeta às nações” (Jr 1:5). Paulo tinha a mesma convicção a respeito de si e de seu chamado para ser apóstolo. O Deus que lhe revelou seu Filho foi o mesmo que “me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça” (Gl 1:15). Observe que os dois versículos contêm mais que uma referência ao tempo, isto é, antes do nascimento de Jeremias e Paulo, Deus sabe o que lhes aconteceria. Afirma-se que já artes de eles nascerem Deus os tinha consagrado ou separado para o ministério especial para o qual ele haveria de chamá-los depois. É certo, então, que não podemos dizer que não havia uma ligação entre as duas partes da sua vida.

Será que não combina melhor com o Deus da Bíblia concluir que ele os capacitou antes de chamá-los (um condicionamento genético, diríamos modernamente), o que se manifestou e pôde ser usado somente depois? Deus esteve ativo nas duas partes da sua vida, e combinou ambas de maneira perfeita. De modo semelhante todos os escritores bíblicos foram preparados antes pela providência de Deus em termos de temperamento, educação e experiência, para depois serem inspirados pelo Espírito Santo para comunicar uma mensagem totalmente adequada ao tipo de pessoa que eram.

Se alguém objetar que o que valeu para profetas e apóstolos mão vale necessariamente para os cristãos comuns de hoje, eu responderia que a Bíblia sugere o oposto. O plano gracioso de Deus para cada um de nós é eterno. Ele foi imaginado e até “dado em Cristo Jesus antes dos tempos eternos” (2 Tm 1:9); Deus nos escolheu para que fôssemos santos e nos destinou para que fôssemos seus filhos através de Jesus Cristo “antes da fundação do mundo” (Ef 1:4,5); e as boas obras para as quais fornos recriados em Cristo são exatamente aquelas que “Deus de antemão preparou ” (Ef 2:10). Esta verdade fundamental de que Deus planejou o fim desde o começo, deve advertir-nos contra concluir com muita rapidez em favor de uma descontinuidade entre natureza e graça, entre nossa vida pré e pós-conversão.

Há uma outra razão para crermos em um vínculo entre dons naturais e espirituais. Diversos charismata, além de não serem milagrosos, são claramente mundanos. São dons espirituais de natureza material. Talvez os exemplos mais claros sejam os três últimos da lista de Paulo em Romanos 12:
“… o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria.” (Rm 12:8).

Não pode haver dúvida de que estes três fazem parte da lista de charismata. A própria palavra consta do início do versículo 6. A lista toda faz parte da metáfora “um corpo – muitos membros” (vv. 4, 5), como em 1 Coríntios 12. Todos os sete dons da lista de Romanos 12 são apresentados de uma maneira quase idêntica.

Então, do que falam estes três dons? O intermediário dos três é ambíguo no grego, podendo significar tanto “aquele que ajuda” como “que tem autoridade” (BLH) ou “quem lidera”; neste sentido é usado para os líderes da igreja e presbíteros em 1 Ts 5:12 e 1 Tm 5:17. Quanto aos outros dois dons não há dúvidas. Um (“o que contribui”) se refere a dar dinheiro, e é usado especificamente em Ef 4:28 para expressar a doação “ao necessitado”; o outro é “quem exerce misericórdia”. Acontece que descrentes podem, igualmente, dar dinheiro a pessoas necessitadas e exercer misericórdia, e o fazem.

Então, em que sentido as duas atitudes podem ser consideradas “dons espirituais” concedidos por Deus exclusivamente aos seus filhos? É, no mínimo, improvável que o primeiro destes dons seja uma chuva de dinheiro repentina, depois da conversão! Pelo contrário, creio que devermos concordar que os recursos (o dinheiro para dar, a força para servir) já estavam nestas pessoas antes de sua conversão. O que é novo, que transforma sua capacidade natural em um dom espiritual, deve estar na área do seu objetivo (as causas que eles servem e para que dão) e da sua motivação (os incentivos que os orientam). Pelo menos é nisto que Paulo põe a ênfase. Ele diz que não deve haver uma atitude indisposta e relutante. Quem dá dinheiro deve exercer seu dom “com liberalidade” (“generosidade”, BLH), e quem exerce misericórdia, “com alegria”.

Um vínculo semelhante entre talentos naturais existentes antes da conversão e dons espirituais presentes após a conversão, pode existir também entre dois dos charismata anteriores que Paulo menciona em Romanos 12, que são “o que ensina” (v. 7) e “o que exorta” (v. 8). É óbvio o que significa “ensinar”. O verbo exortar (parakaleo), por sua vez, tem diversos significados, que vão desde “pedir” e “suplicar” até “incentivar”, “confortar” e “consolar”. Os dois verbos podem estar se referindo a diferentes aspectos do ministério público da palavra, de um lado a instrução e de outro a exortação.

A “exortação” (paraklesis) pode, certamente, ser dada em discurso formal (At 13:15), ou por escrito (Hb 13:22). Mesmo assim, paraklesis é um conceito mais amplo que inclui o tipo de incentivo e conforto que a amizade, interesse e amor pessoal podem dar. Acontece que tanto a instrução como incentivo podem ser dados por pessoas não-cristãs. No mundo secular encontramos muitas pessoas que são (como dizemos) “professores natos”, e outras cujo grande dom é sua compreensão, disponibilidade, sensibilidade, em resultado do que elas reanimam as pessoas e as incentivam em seu caminho. Então, qual pode ser a diferença entre professores e conselheiros não-cristãos, por um lado e cristãos com estes dons espirituais, por outro?

Em vista do que foi escrito acima sobre o Deus da natureza e da graça, a priori não é improvável que Deus dê o dom espiritual do ensino a um crente que, antes de converter-se, não conseguia comunicar-se, ou o dom espiritual do aconselhamento a um Irmão ou irmã que é antipático ou rude por temperamento? Isto não seria impossível para Deus. Mas não estaria mais em harmonia com o Deus da Bíblia, cujos planos são eternos, supor que seus dons espirituais andam lado a lado com seus talentos naturais? E que, por exemplo, um “filho de exortação” como Barnabé (At 4:36), que exerceu seu ministério pessoal dando generosamente (v. 37) e sendo amigo pessoal (por ex., At 9:26, 27, 11:25,26), já era este tipo de pessoa, pelo menos em potencial, quando Deus o fez?

Neste caso devemos procurar as peculiaridades dos dons espirituais de ensino e aconselhamento na elevação, na intensificação, na “cristianização” de um talento natural latente, ou já presente. Por esta razão, uma pessoa pode ser um professor dotado antes de sua conversão, e depois de receber o charisma do ensino que o capacita a expor com entendimento, clareza e relevância. Ou alguém pode ter por natureza uma maior facilidade de se relacionar amigavelmente com pessoas, mas depois da conversão recebe o dom espiritual da “exortação”, que o capacita a exercer um ministério cristão específico de “exortação em Cristo” (Fp 2:1), que inclui a instrução cristã (p. ex., 1 Ts 4:18; Tt 1:9.) e o calor e a força da fé cristã (Rm 1:12). Em todas estas últimas referências ocorrem as palavras parakaleo ou paraklesis.

Portanto, a evidência bíblica nos adverte a não traçarmos uma linha demarcatória muito firme entre dons naturais e espirituais. John Owen, em seu grande livro do século XVII, Pneumatologia ou A Discourse Concerning the Holy Spirit (Uma Dissertação Sobre o Espírito Santo), distinguiu entre dois tipos de dons espirituais – “os que excedem todos os poderes e capacidades da mente humana” e “os que consistem de reforços extraordinários das capacidades da mente humana”.


Autor: John Stott
Trecho extraído do livro Batismo e Plenitude do Espírito Santo. Editora: Vida Nova


Nenhum comentário:

Postar um comentário