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1. Conceito de família
O vocábulo família pode possuir vários significados para as diversas áreas das ciências
humanas, como a sociologia, a antropologia ou o direito. No entanto,
para os fins deste estudo, limitar-se-á aos conceitos trazidos pela
ciência jurídica.
A
legislação pátria não apresenta um conceito definido da família. Assim,
tome-se para efeitos didáticos as três acepções do vocábulo família
elencados por Maria Helena Diniz, que são o sentido amplíssimo, o sentido lato e a acepção restrita.
No entendimento da professora, família no sentido amplíssimo seria aquela em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade[1]. Já a acepção lato sensu do vocábulo refere-se aquela formada “além dos cônjuges ou companheiros,
e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem
como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro)”[2]. Por fim, o sentido restrito restringe a família à comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e a da filiação[3].
A
legislação pátria abrange as três acepções trazidas pela autora, sendo
aplicável cada uma em diferentes aspectos das relações familiares,
graduando os direitos e obrigações de acordo com a proximidade do
círculo familiar[4].
Quem melhor sintetiza o sentido de família constante no ordenamento jurídico brasileiro é o ilustre Orlando Gomes, que considera família “o
grupo fechado de pessoas, composto dos genitores e filhos, e para
limitados efeitos, outros parentes, unificados pela convivência e
comunhão de afetos, em uma só e mesma economia, sob a mesma direção[5].
Depreende-se
dos conceitos trazidos por esses e outros doutrinadores a intenção do
legislador em considerar a família não apenas enquanto instituição jurídica, mas em sua importância social, em suas várias formas e variações. Na lição de Paulo Lôbo:
Sob
o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas
associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que
podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos
de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é
que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo
parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins)[6].
Assim, para o Direito, família consiste na organização social formada a partir de laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos.
2. Evolução histórica da família
A
família pode ser considerada a unidade social mais antiga do ser
humano, a qual, historicamente, mesmo antes do homem se organizar em
comunidades sedentárias, constituía-se em um grupo de pessoas
relacionadas a partir de um ancestral comum ou através do matrimônio.
Todos
os membros da família assumiam obrigações morais entre si, sob a
liderança do ancestral comum, conhecido como “patriarca”, normalmente da
linhagem masculina, símbolo da unidade da entidade social, reunindo-se
em uma mesma comunidade todos seus descendentes, os quais compartilhavam
de uma identidade cultural e patrimonial. Essas primeiras entidades
familiares, unidas por laços sangüíneos de parentesco, receberam o nome
de clãs.
Com
o crescimento territorial e populacional desses clãs, que chegavam a
possuir milhares de membros, essas entidades familiares passaram a se
unir, formando as primeiras tribos, grupos sociais compostos de
corporações de grupos de descendentes.
Assim,
a organização primitiva das famílias, fundadas basicamente apenas nas
relações de parentesco sangüíneo, deu origem às primeiras sociedades
humanas organizadas. A expressão família surge a partir de uma dessas organizações sociais.
O termo “família” advém da expressão latina famulus,
que significa “escravo doméstico”, que designava os escravos que
trabalhavam de forma legalizada na agricultura familiar das tribos
ladinas, situadas onde hoje se localiza a Itália[7].
Com
o desenvolvimento de sociedades mais complexas, na qual os laços
sanguíneos eram cada vez mais dissolvidos entre a população, ganha
importância no Direito da Roma Antiga a expressão família natural,
formada apenas por um casal e seus filhos. Ao contrário dos clãs, que
se formavam a partir da relação de parentesco com um ancestral comum, a família natural romana originava-se através de uma relação jurídica, o casamento.
A instituição do casamento era dividida em confarreatio, o casamento de caráter religioso, restrito à classe patrícia, caracterizado por uma cerimônia de oferenda de pão aos deuses; coemptio, reservada à plebe, celebrado mediante a venda fictícia, do pai para o marido, do poder sobre a mulher; e o usos, em que o marido adquiria a mulher pela posse, isto é, vida em comum no ínterim de um ano[8].
Os pressupostos para o casamento romano eram a coabitação e o chamado affectio maritalis, este último consistente na manifestação expressa dos nubentes de viverem como marido e mulher[9]. Ao findar qualquer um desses pressupostos, extinguia-se o casamento, valorizando-se o afeto entre os cônjuges[10].
Não
obstante a importância do afeto na relação matrimonial, o modelo romano
de família mantinha a estrutura de poder despótico, “concentrados sob a
patria potestas do ascendente comum vivo mais velho”[11]. O poder do patriarca era dividido em pater familias, o chefe da família natural,
o qual exercia seu poder sobre os seus descendentes não emancipados,
sua esposa e com as mulheres casadas com seus descendentes[12].
A família natural
foi adaptada pela Igreja Católica, que transformou o casamento em
instituição sacralizada e indissolúvel, e única formadora da família
cristã[13],
formada pela união entre duas pessoas de diferentes sexos, unidas
através de um ato solene, e por seus descendentes diretos, a qual
ultrapassou milênios e predomina até os dias atuais.
Cânon
1055, §1º: A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher
constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole
natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi
elevada, entre os batizados, à dignidade do sacramento.
Destaca-se
dentro do modelo canônico de família a importância destinada ao sexo,
sendo que a relação carnal entre os nubentes tornou-se requisito de
validade para a convalidação da união. Esta condição estabelecida pelo
direito eclesiástico é fruto da indissociação entre o matrimônio e a
procriação, função primordial da união e que poderia ocorrer após o
sacramento do casamento.
Entendia-se
dessa forma que o fim do matrimônio enquanto instituição era a
procriação e, por conseguinte, a educação da prole, o que tornava
justificável a prática do ato sexual dos cônjuges, autorizado no seio
dessa instituição como remédio (...)[14].
Ademais,
independentemente da existência ou não de afeto entre os cônjuges, o
Direito Canônico estabelece que a união decorrente do casamento é
“indissolúvel, isto é, não se pode dissolver por vontade dos cônjuges,
exceto pela morte[15]”, nos termos do cânon 1056, ao contrário do que vigorava no Direito Romano.
Assim,
como se procurou demonstrar brevemente, a evolução da família, em
especial dentro das sociedades ocidentais, baseou-se em seu princípio na
consanguinidade entre seus membros, isto é, na origem comum de seus
membros, formando-se grandes grupos familiares originários de um único
patriarca. Gradualmente, essa estrutura foi substituída por núcleos
familiares menores, formados a partir da união entre homens e mulheres
mediante um ato solene, chamado casamento, que foi consolidado e
sacralizado pela Igreja Católica, a qual dominou a cultura e a sociedade
das nações européias ocidentais por mais de um milênio.
Esse
modelo de estrutura familiar nuclear persiste, sendo reconhecida pela
maioria das legislações ocidentais vigentes o casamento tanto como ato
jurídico formal, quanto como sacramento religioso, como por exemplo no
Brasil, nação formada com fundamento em preceitos da Igreja Católica
Apostólica Romana, como bem sintetizado por Orlando Gomes:
Na organização jurídica da família hodierna é mais decisiva a influência do direito canônico. Para o cristianismo, deve a família fundar-se no matrimônio, elevado a sacramento
por seu fundador. A Igreja sempre se preocupou com a organização da
família, disciplinando-a por sucessivas regras no curso dos dois mil
anos de sua existência, que por largo período histórico vigoraram, entre
os povos cristãos, como seu exclusivo estatuto matrimonial.
Considerável, em consequência, é a influência do direito canônico na estruturação jurídica do grupo familiar[16].
Todavia,
como será demonstrado em outro momento, a consanguinidade e a milenar
instituição do casamento vêm perdendo espaço nas mais recentes doutrinas
e jurisprudência, bem como pela própria legislação, por um fator muito
mais preciso e condizente à realidade: o afeto.
3. A família no Direito brasileiro antes da promulgação da Constituição Federal de 1988
Como
citado anteriormente, em razão da colonização portuguesa no Brasil,
este foi fundado mediante preceitos da Igreja Católica Apostólica
Romana, o que se refletia no direito vigente no país, as Ordenações
Filipinas, de 1595.
A
única entidade familiar reconhecida pelas Ordenações Filipinas era a
formada pelo casamento, que poderia se dar de forma solene, realizado na
Igreja e atrelado à conjunção carnal entre os nubentes, e o casamento
decorrente do trato público e da fama, chamado de casamento com marido conhecido, modalidade não reconhecida pelo direito canônico[17].
Todavia,
ainda que esta forma de casamento não solene contrariasse a doutrina
Católica, em especial o Sagrado Concílio Tridentino de 1564, ambas as
formas previstas na legislação filipina deveriam atender aos preceitos
católicos, como a indissolubilidade.
Aqui
no Brasil, por muito tempo, a Igreja Católica foi titular quase que
absoluta dos direitos matrimoniais; pelo Decreto de 3 de novembro de
1827 os princípios do direito canônico regiam todo e qualquer ato
nupcial, com base nas disposições do Concílio Tridentino e da
Constituição do Arcebispado da Bahia[18].
O
casamento como única entidade familiar juridicamente reconhecida foi
mantida pelas legislações imperiais, sendo, no entanto, estendido também
aos não católicos, reconhecendo-se em 1861 como casamento civil as
demais uniões religiosas[19].
Não obstante, os demais preceitos canônicos foram mantidos até 1890,
quando o Decreto nº 181, de autoria de Rui Barbosa, passou a considerar
como único casamento válido aquele realizado pelas autoridades civis e
relativizou a indissolubilidade do matrimônio, permitindo a separação de
corpos[20], não sendo atribuído qualquer valo jurídico ao matrimônio religioso[21].
O
referido decreto vigorou até a promulgação do Código Civil de 1916 (Lei
nº 3.071/16), em que se mantém o patriarcalismo, no qual o homem é o
chefe da família, incluindo a mulher casada no rol dos indivíduos
relativamente incapazes. A legislação civil consagra o casamento como o
único instituto jurídico formador da família, dificultando, outrossim, a
adoção e permitindo o reconhecimento de filhos apenas quando não
adulterinos ou incestuosos[22].
O reconhecimento da adoção como instrumento formador de relação de
parentesco só foi regulamentado através da Lei nº 3.133/57, no entanto,
até 1977, o adotado só tinha direito a metade da legítima, quando em
concurso com filhos ditos legítimos, em nítido detrimento do parentesco
formado pelo afeto em relação ao formado pela consangüinidade.
Ademais,
o diploma civil de 1916 consagra de tal forma a instituição do
casamento que não admitia a dissolução do vínculo conjugal, permitindo
apenas o chamado “desquite”, substituída pela separação judicial pela
polêmica Lei nº 6.515/77, a qual também criou a instituição do divórcio.
Na
restrita visão do Código Civil de 1916, a finalidade essencial da
família era a continuidade. Emprestava-se juridicidade apenas ao
relacionamento matrimonial, afastadas quaisquer outras formas de
relações afetivas. Expungia-se a filiação espúria e proibiam-se doações
extraconjugais[23].
Verifica-se
que durante décadas a legislação brasileira protegeu a todo custo a
instituição da família e os laços sanguíneos entre os parentes, vedando
ou criando empecilhos para a dissolução da relação conjugal e para a
adoção, ignorando a importância do afeto em tais relações.
Ademais,
foram completamente ignoradas pelo legislador de 1916 as uniões de
caráter convivencial, de companheirismo, não reservando qualquer direito
às uniões que não sejam formadas por intermédio do casamento, como o
concubinato e a união estável, como hoje é conhecida a união legítima,
sem a celebração de matrimônio.
A
negativa de reconhecer os filhos fora do casamento possuía nítida
finalidade sancionatória, visando a impedir a procriação fora dos
“sagrados laços do matrimônio”. Igualmente afirmar a lei que o casamento
era indissolúvel servia como verdadeira advertência aos cônjuges de que
não se separassem. Também negar a existência de vínculos afetivos
extramatrimoniais não almeja outro propósito senão o de inibir o
surgimento de novas uniões. O desquite – estranha figura que rompia, mas
não dissolvia o casamento – tentava manter a todos no seio das famílias
originalmente constituídas. Desatendida a recomendação legal, mesmo
assim era proibida a formação de outra família.[24]
A
Constituição Federal de 1934 foi a primeira no Brasil a dedicar um
capítulo à família, expressamente garantindo proteção especial do Estado
a esta instituição, preceitos repetidos pelas constituições
subsequentes[25].
No
entanto, as novas cartas constitucionais pouco modificaram as normas do
diploma civil de 1916, sendo mantida a estrutura patriarcal, o
casamento como forma exclusiva de formação da família, o expresso
tratamento discriminatório dado aos filhos nascidos fora do casamento e
aos havidos por adoção e a ausência de referências ao companheirismo,
seja ela na forma de união estável, seja na forma do concubinato.
Estes
paradigmas só começaram a ser relativizados, em especial, a partir das
anteriormente citadas Lei da Adoção (Lei nº 3.133/57) e Lei do Divórcio
(Lei nº 6.515/77), bem como pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei nº
4.121/62), que devolveu a plena capacidade à mulher casada[26].
Assim,
mesmo com as diversas alterações constitucionais e legislativas desde a
promulgação do Código Civil de 1916, até o advento da Constituição
Federal de 1988, a única instituição reconhecida como familiar era o
casamento, enquanto a união estável e o concubinato eram ignorados pelo
legislador, e a adoção era deixada para segundo plano por meio de
expressas diferenças de direitos e de tratamento entre os filhos
sangüíneos e os adotados, sendo de pouca relevância jurídica o afeto nas
relações familiares.
4. A Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002
A
Constituição Federal de 1988 dispensou um tratamento especial ao
Direito de Família, reservando um capítulo destacado apenas para este
ramo do Direito (Capítulo VII do Título VIII), que sofreu profunda
transformação. Em contraposto ao modelo autoritário e patriarcal
definido pelo Código Civil de 1916, o modelo de família depreendido do
texto constitucional é fundado em preceitos como a igualdade,
solidariedade e do respeito à dignidade da pessoa humana, fundamentos e
ao mesmo tempo objetivos do Estado brasileiro[27].
Ao
mesmo tempo em que a nova Constituição confirmou normas já existentes
no ordenamento jurídico brasileiro, como a gratuidade do casamento e a
garantia de efeitos civis ao casamento religioso, inovou ao reconhecer
como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, ao
igualar o homem e a mulher na sociedade conjugal, e ao vedar a quaisquer
diferenças de direitos, de qualificação ou de tratamento entre os
filhos havidos na constância do casamento ou fora dele, ou por adoção[28].
A
Constituição de 1988 realizou enorme progresso na conceituação e tutela
da família. Não aboliu o casamento como forma ideal de regulamentação,
mas também não marginalizou a família natural como realidade social
digna de tutela jurídica. Assim, a família que realiza a função de
célula provém do casamento, como a que resulta da “união estável entre o
homem e a mulher” (art. 226, §3º), assim como a que se estabelece entre
“qualquer dos pais e seus descendentes”, pouco importando a existência,
ou não, de casamento entre os genitores (art. 226, §4º)[29].
Ao
igualar o filho havido por adoção aos filhos de origem sangüínea e
reconhecer como família a união decorrente do companheirismo, chamada de
união estável, a Constituição Federal de 1988 foi o primeiro
dispositivo jurídico brasileiro a reconhecer e igualar o afeto como
formador da família, sem distinção aos laços decorrentes do casamento ou
de sangue.
Em
consonância com a Constituição de 1988 foi promulgada a Lei nº 8.971/94
- que dispõe sobre o direito dos companheiros a alimentos e a sucessão -
e a Lei nº 9.278/96 – que regula o artigo 226, §3º da Constituição
Federal, que trata da união estável, sendo garantidos às relações
formadas sem o ato solene do casamento os direitos garantidos pelo texto
constitucional.
As
normas constitucionais que dispõem sobre a família só foram
regulamentadas pela legislação infraconstitucional com a promulgação da
Lei nº 10.406, de 10/01/2002, o atual Código Civil.
Dentre
as relevantes novidades trazidas pelo Código Civil de 2002 está a
expressa igualdade dos cônjuges no seio familiar, extinguindo-se o poder
patriarcal, bem como a atualização da dissolução do vínculo conjugal,
por meio da separação e do divórcio; a atualização da adoção, sem
qualquer distinção entre os filhos de sangue e os adotados; a
regulamentação da união estável entre o homem e a mulher, bem como o
reconhecimento de direitos decorrentes das relações concubinas.
Dessa
forma, verifica-se que o novo diploma civil, em consonância com os
preceitos irradiados pela Constituição Federal de 1988, abrange em seu
texto várias modalidades de família, formadas por relações
consanguíneas, por atos jurídicos solenes ou pelo afeto.
O
afeto, enquanto formador da família, está diretamente presente na
adoção e nas relações de convivência, como a união estável, vez que
enquanto essas não dependem de consanguinidade ou solenidade, a
formalidade que pressupõe a adoção é resultado exclusivo do afeto
demonstrado pelos pais.
Todavia,
não obstante as evoluções legislativas trazidas pelo Código Civil de
2002, é importante frisar que seu projeto data da década de 70[30],
tendo sofrido inúmeras emendas e modificações ao longo de quase trinta
anos de trâmite, não apenas em razão da Constituição de 1988, que exigiu
uma reforma quase integral do diploma civil, como das naturais mudanças
necessárias pelo próprio decurso do tempo[31].
Não obstante, em razão de tantas modificações e do longo trâmite, o
Código Civil não conseguiu abranger todas as mudanças que se mostraram
necessárias nos quase noventa anos de vigência do Código anterior ou
mesmo dos quase quinze anos de promulgação da Constituição de 1988. Nas
palavras de Maria Berenice Dias: “o novo Código, embora bem-vindo,
chegou velho”[32].
5. O afeto como formador da família
A
instituição familiar, ao longo da história das civilizações ocidentais,
sempre teve duas origens comuns e paralelas, primordialmente: a
consanguinidade e a união entre duas pessoas, formalizada através do
casamento. Ainda que o Direito Romano tenha considerado o afeto como
pressuposto do casamento, como brevemente explicitado anteriormente, os
laços afetivos sempre foram deixados em segundo plano.
Após
a sacralização do casamento e sua difusão pela Igreja Católica como
única origem da família, sendo o mesmo indissociável, independentemente
da vontade dos cônjuges, o afeto perdeu cada vez mais importância nas
legislações dos países de origem cristã dentro de um modelo de família
rígido e imutável.
Entretanto,
o Direito não é imutável e não tem qualquer valor se não se espelhar na
sociedade, nos costumes do povo, que é igualmente a origem e o destino
das normas jurídicas.
Após
séculos de uma legislação baseada em preceitos católicos, em que o
casamento, enquanto única instituição familiar, era de todas as formas
resguardado pelo ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal
de 1988 introduziu uma nova realidade ao Direito de Família,
reconhecendo como entidade familiar, além do casamento, as famílias
monoparentais e as uniões estáveis.
Assim,
ainda que a palavra afeto não esteja presente no texto constitucional, o
mesmo foi objeto de proteção pelo Poder Constituinte Originário, como
ensina Maria Berenice Dias:
(...)
ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela
jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento,
tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu
reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a
constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário,
com maior espaço para o afeto e a realização individual.[33]
No
mesmo sentido é a lição de Rodrigo da Cunha Pereira, para quem
relativizar o casamento, permitindo sua dissolução, bem como o equiparar
às uniões estáveis, que não exigem qualquer formalidade “(...)
significa, em última análise, a compreensão de que o verdadeiro
casamento se sustenta no afeto, não nas reminiscências cartoriais. O
Direito deve proteger a essência, muito mais do que a forma ou a
formalidade”[34].
Ao
mesmo tempo, a Constituição Federal de 1988 também inovou ao garantir
aos filhos havidos por adoção, instituição jurídica que pressupõe
afetividade, o mesmo tratamento e direitos garantidos àqueles havidos
por consanguinidade. O afeto é elevado pela Carta Maior a valor
jurídico, com consequências equivalentes ao vínculo oriundo dos laços
sanguíneos.
Para
Sérgio Resende de Barros, o afeto, enquanto característica inata dos
seres humanos, mais do que uma garantia constitucional, é um direito
natural do homem:
O
direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um indivíduo a outro. O
afeto ou afeição constitui, pois, um direito individual: uma liberdade,
que o Estado deve assegurar a cada indivíduo, sem discriminações, senão
as mínimas necessárias ao bem comum de todos[35].
O
afeto transcende a própria família. Não é um laço que une apenas os
integrantes de um núcleo familiar, não é apenas um valor jurídico, mas
um sentimento que nutre relações de amizade, companheirismo, humanidade,
solidariedade[36].
Não é fruto da biologia, do sangue. É um motor social, componente de
todas as relações humanas, principalmente daquela que é a base de nossa
sociedade: a família.
Na
transformação da família e de seu Direito, o transcurso apanha uma
'comunidade de sangue' e celebra, ao final deste século, a possibilidade
de uma 'comunidade de afeto'. Novos modos de definir o próprio Direito
de Família. Direito esse não imune à família como refúgio afetivo,
centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível (...).
Comunhão que valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para
correr nas veias do renovado parentesco, informado pela substância de
sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou
consanguíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades,
espectro cultural, sem supremacia desmedida, sem diferenças
discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade
e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir
portas e escancarar novas questões. Eis, então, o direito ao refúgio
afetivo.[37]
Conforme
se acentuam os sentimentos, conforme muda o afeto, as relações
familiares também mudam. Os laços de parentalidade e de fraternidade e
as relações conjugais são criadas e dissolvidas de acordo com o afeto
existente entre os indivíduos, e o Direito, enquanto ciência humana e
instrumento do povo, não pode ignorá-lo ou diminuir sua importância.
A
família identifica-se pela comunhão de vida, de amor, de afeto no plano
da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade
recíproca. No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à
sua democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de
respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem
razões morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais que
justifiquem a excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das
pessoas.[38]
O
afeto, enquanto valor fundamental das relações familiares, ainda que
não esteja expresso no texto constitucional, ganha aplicação nas letras
de inúmeros juristas, como os já citados Maria Berenice Dias[39] e Rodrigo da Cunha Pereira[40], bem como Álvaro Villaça Azevedo[41], Luiz Edson Fachin[42], Sérgio Resende de Barros[43],
entre tantos outros, e nas decisões de outros tantos magistrados, em
especial no que se trata da união entre pessoas do mesmo gênero e da
parentalidade socioafetiva.
Enquanto
a união homoafetiva será objeto de aprofundada análise ao longo do
presente estudo, ressalta-se neste momento a aplicação da parentalidade
socioafetiva enquanto instituição jurídica, objeto de vários estudos
acadêmicos, destacando-se o pioneirismo de João Batista Vilella, nos
idos de 1980[44].
Mais
recentemente, juristas como Maria Berenice Dias têm defendido a chamada
adoção à brasileira, que tem origem no elo afetivo e levam ao
reconhecimento do vínculo jurídico da filiação. Nas palavras da jurista,
“é de tal ordem a relevância que se empresta ao afeto que se pode dizer
agora que a filiação se define não pela verdade biológica, nem a
verdade legal ou a verdade jurídica, mas pela verdade do coração”[45].
Ademais,
a parentalidade socioafetiva está ganhando destaque nos tribunais
pátrios, tanto que foi objeto de dois enunciados na I Jornada de Direito
Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, sob a chancela do
Superior Tribunal de Justiça, que não apenas reconheceram a instituição
da parentalidade socioafetiva, como demonstraram o valor do afeto no
ordenamento jurídico brasileiro, como se verifica a seguir:
Enunciado
nº 103 – O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de
parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a
noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente
quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao
pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da
paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
Enunciado
nº 108 – No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603,
compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e
também a socioafetiva.[46]
Assim,
depreende-se do ordenamento jurídico pátrio, em especial da
Constituição Federal de 1988, dos estudos acadêmicos e dos tribunais
brasileiros que o afeto transcendeu a figura de elemento ou origem da
família, e se tornou um valor inerente às relações familiares e deve ser
encarada como um princípio que se irradia por todo o Direito de
Família.
* Matheus
Antonio da Cunha, Advogado, associado ao escritório de advocacia
Pedroso Advogados Associados (OAB/SP nº 5.918), sediado em
Piracicaba/SP. Graduado em Direito pela Universidade Metodista de
Piracicaba (2009).
[1] DINIZ, M. H. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 5. p. 9.
[2] Ibid., p. 10.
[3] Ibid., p. 10.
[4] GOMES, O. Direito de Família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 33.
[5] GOMES, 1998. p. 35.
[6] LÔBO, P. Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 2.
[7] MIRANDA, F. C. P. de. Tratado de Direito de Família. Campinas: Bookseller, 2001. p. 57/58.
[8] DINIZ, 2008. p. 50.
[9] CASTRO, A. M. O. de. A família, a sociedade e o direito. In: ELESBÃO, E. C. (Coord.). Pessoa, gênero e família: Uma visão integrada do Direito. Porto Alegre: Livaria do Advogado, 2002. p. 90.
[10] Ibid.
[11] WALD, A. O novo Direito de Família. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 712 p. 9.
[12] Ibid., p. 9.
[13] CASTRO, op. cit., p. 90.
[14] CAPPARELLI, J. C. Manual sobre o matrimônio no Direito Canônico. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 20.
[15] Ibid., p. 22.
[16] GOMES, 1998. p. 40.
[17] WALD, 2002. p. 20.
[18] DINIZ, 2008. p. 51.
[19] WALD, op. cit., 20.
[20] Ibid., p. 21.
[21] DINIZ, op. cit., p. 52.
[22] WALD, 2002. p. 22.
[23] FUGIE, E. H. A união homossexual e a Constituição Federal. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, out./dez. 2002. n. 15., p. 133.
[24] DIAS, M. B. Família, ética e afeto. Consulex. Brasília: Consulex, 15 abr. 2004, n. 174. p. 34-35.
[25] LÔBO, 2009. p. 6.
[26] DIAS, M. B. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 30.
[27] LÔBO, 2009. p. 5.
[28] WALD, 2002. p. 24-25.
[29] THEODORO JÚNIOR, H. apud GOMES, 1998. p. 34.
[30] FIUZA, 2000.
[31] DIAS, 2009. p. 31.
[32] DIAS, 2009. p. 31.
[33] DIAS, 2009. p. 69.
[34] PEREIRA, R. C. Da união estável. _________; DIAS, M. B.; (Coord.). Direito de Família e o novo Código Civil. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 230.
[35] BARROS, S. R. O Direito ao afeto. Instituto Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte, jun. 2002. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=50>. Acesso em: 17 out. 2009.
[36] BARROS, S. R., 2003. p. 149 apud DIAS, 2009. p. 70.
[37]
FACHIN apud CUNHA, M. E. de O. O afeto face ao princípio da dignidade
da pessoa humana e seus efeitos jurídicos no Direito de Família. Instituto Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte, jan. 2009. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2009.
[38] DIAS, 2009. p. 55.
[39] Ibid., p. 55.
[40] PEREIRA, 2002. p. 229-230.
[41] AZEVEDO, B. M. V. de. O amor como fundamento legitimador do Direito. Instituto Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte, jan. 2007. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=258>. Acesso em: 31 mar. 2009.
[42] FACHIN apud CUNHA, 2009.
[43] BARROS, 2002.
[44] TARTUCE, F. Novos princípios do Direito de Família brasileiro. Curso FMB,
São Paulo, 200-. Disponível em:
. Acesso em: 27 out. 2008.
[45]
DIAS, M. B. Adoção e a espera do amor. 200-, Disponível em:
Acesso em: 31 mar. 2009.
[46] ENCONTRO DOS JUÍZES DE FAMÍLIA DO INTERIOR DE SÃO PAULO, 1., 10 nov. 2006, Piracicaba. Enunciados...
Belo Horizonte: Instituto Brasileiro de Direito de Família, 2006.
Disponível em: FONTE:
http://www.artigonal.com/doutrina-artigos/a-familia-conceito-e-evolucao-historica-6684024.html
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