A História da Medicina é cheia de descobertas, conquistas e disputas,
por isso é interessante conhecer um pouco mais de como era a medicina
na Idade Média. Durante muito tempo predominou, na Antiguidade, a visão
mágico-religiosa, segundo a qual doença era resultado de castigo dos
deuses, de maldições ou de feitiçaria. Assim, a epilepsia era chamada
“doença sagrada”: seria a manifestação da posse do corpo por divindades.
Mas então, na Grécia clássica, surgem Hipócrates e seus discípulos,
sustentando que a enfermidade tinha causas puramente naturais, ligadas
ao modo de vida, à alimentação, ao meio ambiente. Sagrada, a epilepsia?
Claro que não. Doença, sim, mas doença como outra qualquer. Claro que
era preciso ter coragem para defender idéias assim, mas Hipócrates e a
escola hipocrática tinham prestígio. Suas concepções foram incorporadas
pela Roma imperial e desenvolvidas por Cláudio Galeno, no século 2, em
uma gigantesca obra que sintetiza praticamente todo o conhecimento
médico da época.
Minado pela corrupção e pela pobreza de grande parte de uma oprimida
população, assediado pelos povos vizinhos o Império Romano entrou em
declínio. Nesse processo, aliás, as doenças desempenharam um papel
significativo: malária, peste e varíola dizimavam populações e tropas.
Contra essas doenças os médicos de então muito pouco podiam fazer.
A queda de Roma marca o começo da Idade Média. O cristianismo,
perseguido no Império, será agora a religião da maioria da população.
Aos pobres, aos deserdados, aos servos, aos aflitos, aos doentes,
oferecia uma explicação para as pestilências e o conforto espiritual
necessário em época de tanto sofrimento.
E o cristianismo tinha sua própria concepção sobre a doença. Esta é
freqüentemente um resultado do pecado. Exemplo era a lepra, na qual
estava implícita a maldição bíblica. Diz o Levítico, livro do Antigo
Testamento: “Quem quer que tenha lepra será pronunciado impuro e deverá
morar sozinho”. Verificada a doença – e o diagnóstico, como se pode
imaginar, era muito impreciso, incluindo certamente outras doenças da
pele –, o leproso era considerado morto. Rezava-se a missa de corpo
presente e ele era enviado a um leprosário, instituição que se
multiplicou na Idade Média, ou tinha de vagar pelas estradas, usando
roupas características e fazendo soar uma matraca para advertir a outros
de sua contagiosa presença.
Já as epidemias eram consideradas um castigo divino para os pecados
do mundo (outra idéia bíblica). Mas, sendo um castigo, a doença podia
funcionar como penitência e absolvição; uma vida virtuosa levaria então à
cura resultante da graça divina. Ou seja: a religião proporcionava um
sentido para o sofrimento. Quando em 251 a peste assolou Cartago, sob
ocupação romana, no norte da África, o bispo Cipriano consolou os
cristãos: morrer significa ser libertado deste mundo. Poderia
representar um castigo para os pagãos e os inimigos de Cristo, mas para
os servos de Deus era uma feliz partida. Verdade, estavam morrendo tanto
os justos como os pecadores, porém, dizia Cipriano, os primeiros eram
chamados para o gozo, os segundos para a tortura eterna. A pestilência
fazia assim uma conveniente triagem.
O poder divino da cura poderia ser delegado aos reis, por exemplo.
Essa foi a origem de um procedimento conhecido como “toque real”, usado
no caso da escrófula, a tuberculose dos gânglios linfáticos. Essa
doença, muito comum então, sobretudo em crianças, era transmitida pelo
leite de vacas com mastite tuberculosa (hoje, graças à pasteurização do
leite, um procedimento que mata os micróbios da tuberculose,
praticamente desapareceu). A escrófula não era uma doença mortal, mas
causava um grande transtorno para o paciente: os gânglios, situados em
geral no pescoço, fistulizavam, isto é, formava-se um canal que ia se
abrir na pele, e por ali saía uma substância viscosa, o cáseo,
resultante da infecção. A criança doente era levada, em determinado dia,
ao rei, que lhe punha as mãos, dizendo: “Eu te toco, Deus te cura”. Por
causa disso, a doença era conhecida como mal du roi na França e the king’s evil na Inglaterra.
Pergunta: o toque real curava mesmo? Bem, o fato é que a escrófula
pode regredir espontaneamente. E essas remissões ocasionais contribuíam
para manter o prestígio do procedimento e do monarca que o executava.
Também exerciam poder de cura as relíquias de santos e locais sagrados,
para onde os doentes eram muitas vezes levados em peregrinação. Alguns
desses caminhos ficaram famosos e são percorridos até hoje.
Ao lado do cristianismo e da corrente mística que ele carregava, a
Idade Média herdou tradições e práticas supersticiosas surgidas com o
declínio do Império Romano. Acreditava-se, por exemplo, que as doenças
eram causadas por emanações de regiões insalubres, os chamados miasmas. A
denominação “malária” vem daí, significa “maus ares”. A propósito, essa
concepção não estava totalmente equivocada. De fato, o mosquito
transmissor da malária se prolifera em regiões pantanosas, em que o odor
não é dos melhores.
Se havia superstições para explicar as doenças, havia também aquelas que visavam promover a cura. O livro De Medicina Praecepta
(“Acerca dos Preceitos da Medicina”), escrito por Serenus Sammonicus,
famoso médico da Roma antiga, recomenda que os doentes usassem um
amuleto com a palavra mágica abracadabra. Sextus Placidus, médico do
século 5, tratava de febres com uma felpa de madeira de uma porta por
onde passou um eunuco. O “doutor” Marcellus Empiricus, que viveu na
França entre os séculos 4 e 5, cuidava de lesões oculares tocando-as com
três dedos e cuspindo. O encantamento valia também para venenos.
Era comum também a associação entre as doenças e os astros ou
constelações. Assim, Aquário estava ligado aos joelhos, Libra aos rins,
Peixes aos pés. Saturno, o planeta mais distante e de rotação mais
lenta, condicionava o surgimento da melancolia. Também se recorria à
numerologia – os números correspondentes ao nome do paciente indicariam
se o prognóstico da doença era favorável ou não.
Em relação à medicina como ciência, e até mesmo em relação às medidas
higiênicas, havia desconfiança – quando não franca hostilidade.
Tertuliano dizia que o Evangelho tornava desnecessária a especulação
científica. Para São Gregório de Tours, era blasfêmia consultar médico
em vez de ir à tumba de São Martinho. Avisava São Jerônimo àqueles cuja
pele mostrava-se áspera pela falta de banho: quem se lavou no sangue de
Cristo não precisava lavar-se de novo.
Os médicos, poucos, não inspiravam muita confiança. Escolas de
medicina só surgiram no final da Idade Média; até então o aprendizado
era empírico e excluía importantes conhecimentos, como o da anatomia.
Dissecar cadáveres era uma prática severamente restrita, sobretudo por
motivos religiosos. Considerava-se que a sacralidade do corpo de Cristo
estendia-se aos demais corpos, vivos ou não. Em conseqüência a medicina
continuava baseando-se nos trabalhos de Galeno, que não associava
doenças a órgãos ou sistemas e na qual erros de anatomia não eram raros.
As raras cirurgias, conduzidas sem anestesia e sem qualquer assepsia,
eram praticadas por barbeiros. Até hoje existe, diante de antigas
barbearias inglesas, uma espécie de mastro com listras brancas e
vermelhas, lembrando essa antiga atividade: o vermelho simboliza o
sangue e o branco as bandagens usadas nos operados. Os barbeiros também
faziam a sangria, um dos procedimentos mais comuns à época. A sangria
era usada para tratar a “pletora”, uma situação na qual o corpo tinha
excesso de sangue. O tratamento clínico não era muito melhor. John
Arderne, autor de uma Arte da Medicina e médico de reis da Inglaterra,
tratava cólicas renais com um emplastro quente untado com mel e fezes de
pombos.
Mas engana-se quem pensa que a medicina estagnou completamente nessa
época. Na Espanha muçulmana, médicos árabes e também judeus (os dois
grupos então conviviam em paz) inspiravam-se em Hipócrates e Galeno para
introduzir importantes progressos na cirurgia, na oftalmologia, na
farmácia. Avicena (Ibn Sina), por exemplo, que viveu de 980 a 1037, foi
autor de uma importante obra, o Canon, que até o século 17 serviu como
texto básico das escolas de medicina. Mas a cristandade tinha escasso
acesso a esse conhecimento. A biblioteca de Carlos Magno, famosa por sua
extensão, continha um único texto sobre medicina, De Curandis Morbis
(“A cura das doenças”), de Serenus Sammonicus, famoso médico de Roma
antiga. Apenas no mosteiro medieval o conhecimento médico da Antiguidade
grega era preservado; ali, sob a guarda dos monges, tal conhecimento
não se transformaria em heresia ou apelo ao paganismo.
A ineficácia dos procedimentos mágicos ou religiosos era compensada
com a caridade. Foi assim que surgiram na Idade Média as instituições
precursoras dos modernos hospitais, os xenodochia, asilos para doentes
(e também para viajantes) nos quais os pacientes recebiam, se não o
tratamento adequado pelo menos conforto espiritual. No final da Idade
Média as coisas começaram a mudar. O ensino da medicina torna-se mais
institucionalizado. Nessa época surge a famosa escola de Salerno
(Itália), que funcionou do século 10 ao 12. Eram quatro anos de estudo
mais um de prática sob a supervisão de um médico. O mais famoso
professor em Salerno foi Constantino Africanus, que viveu no século 11
de Cartago, então uma cidade árabe.
Na Escola de Salerno foi elaborado o Regimen Sanitatis Salernitanum,
um código de saúde que continha regras simples, práticas e sensatas para
uma vida saudável. Detalhe curioso: essas recomendações eram em versos,
para serem mais facilmente lembradas. Salerno e depois Montpellier, no
sul da França, eram os pilares da educação médica na época.
Mas a medicina ainda não era uma área autônoma. Era ensinada da mesma
forma que filosofia ou direito, com muitas referências aos mestres e
seus textos e pouca observação ou experimentação. A anatomia continuava
ausente do currículo e só apareceria na Renascença. Mas a cirurgia já
era largamente praticada em Salerno. Quem operava deveria adotar,
previamente, certas precauções: evitar o coito, o contato com mulheres
menstruadas e alimentos cujo cheiro pudesse “corromper” o ar, tal como a
cebola. Uma outra inovação de Salerno foi a licença para que mulheres
pudessem praticar a medicina. Santa Hildegarda, uma abadessa beneditina,
escreveu vários tratados médicos. E Trótula ficou conhecida como
parteira.
O fim da Idade Média foi marcado pelas pestilências. Epidemias
naturalmente já tinham sido registradas, tanto no Oriente como na Grécia
e no Império Romano. Tucídides em Atenas (430 a.C.) e Galeno em Roma
(164) faziam menção a elas, sem falar no próprio Hipócrates. Mas os
movimentos populacionais, a miséria, a promiscuidade e a falta de
higiene dos burgos, os conflitos militares, tudo isso criou condições
para explosivos surtos epidêmicos. O exemplo mais conhecido são as
repetidas epidemias de peste. Doença causada por uma bactéria,
Pasteurella pestis, a peste é em geral transmitida por pulgas de ratos.
Manifesta-se por febre, aumento dos gânglios linfáticos (bubões), que
podem supurar, ou por pneumonia grave, ou por septicemia.
Apesar dos antibióticos, ainda hoje a mortalidade é alta. Ao final da
Idade Média as viagens marítimas e o aumento da população urbana
favoreceram a eclosão de surtos de peste bubônica. A Peste Negra, que
começou em 1347, matou grande parte da população europeia de então.
O Ocidente medieval estava despreparado para enfrentar a peste. Por
outro lado, a doença coincidiu com o início de importantes mudanças
econômicas, sociais e culturais e, em certa medida, até contribuiu com
elas. A enorme hecatombe paradoxalmente valorizou a mão-de-obra. Os
servos já não estavam tão presos às terras do senhor feudal e muitos
deles mudaram-se para as cidades, onde novos ramos de atividades se
desenvolviam. O comércio, inclusive o marítimo, desenvolveu-se muito, as
ciências e as artes progrediram e tudo isso repercutiu na prática
médica. Acabou o tabu em relação aos estudos anatômicos, a medicina
tornou-me mais prática e mais científica.
Isso não quer dizer que crendices e superstições em relação a doenças
tenham desaparecido. A ciência não tem explicação para tudo, muito
menos para os mistérios do corpo humano. Enquanto esses enigmas
persistirem, muitas pessoas continuarão recorrendo ao sobrenatural para
diminuir a angústia que a enfermidade sempre causa, na Idade Média ou em
qualquer outra época.
por Moacyr Scliar (adaptado)
Fonte:
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/medicina-idade-media-doutor-sinistro-433440.shtml (adaptado)
http://maishistoria.com.br/medicina-idade-media/
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