Ao fazer a exegese de 1Tessalonicensses capítulo 4, tendo como foco as palavras que na atualidade compõe os versos 4 e 5, os pelagianos entendiam que o "bem do casamento fosse o mal da concupiscência, pela qual se amam os esposos que desconhecem a Deus, um procedimento proibido pela Bíblia através do apóstolo Paulo", argumentavam que o casamento era um mal, e não era obra de Deus o ser humano gerado nesta relação.
Diante desta
argumentação, Agostinho fez uma pormenorizada e longa refutação, cujo
teor está retratada em "O PECADO ORIGINAL, do capítulo XXXIII ao
XXXVIII, contido no livro A GRAÇA DE CRISTO E O PECADO ORIGINAL.
A pormenorização da
refutação nos oferece não só uma excelente exposição sobre o casamento,
mas também sobre a sensualidade e a sexualidade nele envolvida.
PRIMEIRA PARTE
Para que haja uma facilidade maior na leitura e no entendimento dividimos o texto em duas partes, três capítulos em cada um.
Nos capítulos XXXIII,
XXXIV, e XXXV, Agostinho responde a argumentação dos pelagianos
mostrando a bondade da natureza e maldade do pecado. Também mostra que
as obras de Deus são sempre boas, mesmo que os intermediários sejam
maus, e afirma que o matrimônio existia antes do pecado sem as
consequências da sensualidade.
Agostinho diz: "O
bem do matrimônio é a castidade conjugal, pela qual a sensualidade se
restringe ao bom uso regular da procriação de filhos, e pode ser obra de
Deus, tanto o ser humano procriado no casamento como o fruto da
fornicação e do adultério. Mas nesta questão, onde se indaga não aquilo
que necessita de criador, mas de salvador, não há de se considerar o que
há de bom na procriação de uma natureza, mas o que há de mau no pecado,
que certamente contamina a natureza. Ambos, natureza e pecado da
natureza, se propagam juntos, mas enquanto a natureza é um bem, o pecado
da natureza é um mal.
A natureza se recebe da liberalidade de Deus, já o pecado da natureza provém da condenação da origem. A natureza tem por causa a vontade do Deus Supremo, o pecado da natureza procede da vontade depravada do primeiro homem. A natureza indica Deus como formador da criatura; o pecado da natureza indica Deus como castigador da desobediência. Finalmente, o mesmo e próprio Cristo para curar a natureza é o autor do homem, e para curar o pecado da natureza fez-se homem.
Portanto, o matrimônio é um bem em tudo que lhe é peculiar, e são três as peculiaridades:
1- o preceito da criação;
2- a fidelidade conjugal;
3- o sacramento da união.
- Sobre o primeiro está escrito em 1Tm: Desejo que as jovens viúvas se casem, criem filhos, dirijam suas casas...!
- Sobre a segunda
está escrito em 1Cor 7: A mulher não dispõe de seu corpo, mas é o
marido quem dispõe; do mesmo modo, o marido não dispões de seu corpo,
mas é a mulher quem dispõe...!
- Sobre a terceira está escrito no evangelho de Mateus: Que o homem não separe o que Deus uniu...!
Por ser o matrimônio
um bem, este faz muito bem mesmo com relação ao mal da sensualidade,
visto que não é a sensualidade que faz bom uso de si mesma, mas sim a
razão.
A sensualidade
consiste, -- como observou o apóstolo -- na lei que peleja contra a lei
da razão, e é a lei dos membros desobedientes, mas a razão, quando se
utiliza retamente da sensualidade, faz parte da lei do matrimônio.
Se nenhum bem
pudesse resultar do mal, Deus não formaria o ser humano da união
adulterina. Portanto, assim como o mal culpável do adultério, do qual
nasce um ser humano, não se pode imputar a Deus, o qual na má ação do
homem realiza uma boa ação, assim tudo o que há de vergonhoso na
desobediência dos membros da qual Adão e Eva se envergonharam após a
desobediência, os cobrindo com folhas de figueira, não se imputa ao
matrimônio.
Devido ao matrimônio,
a união conjugal não somente é lícita, mas também é útil e honesta, mas
deve-se imputar ao pecado da desobediência, ao qual se seguiu o
castigo: "que o homem desobediente a Deus sinta seus membros
desobedientes a si próprio. Envergonhando-se deles, rapidamente cuidou
de cobri-los porque se excitavam, não ao comando de sua vontade, mas ao
estímulo da sensualidade, como se fosse a própria vontade."
E o homem, sem
dúvida, não deveu envergonhar-se da obra de Deus, pois em caso contrário
seria causa de vergonha para o ser criado o que a Deus parecia digno.
Assim, nem a Deus, nem ao homem era ofensa aquela nudez natural, pelo
fato de nada haver de vergonhoso, visto que nada houve que merecesse
castigo.
Não há dúvida de que
existia o casamento antes do pecado tendo em vista que como seu
auxiliar o homem recebeu não outro homem, mas a mulher, e as palavras de
Deus CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS, não representam a predição de pecados
culpáveis, mas a benção de matrimônio fecundo. Mediante essas suas
inefáveis palavras, isto é, por esses divinos mandamentos, que vieram na
verdade de sua sabedoria, Deus, que tudo criou, introduziu a potência
do sêmen nos primeiros homens. Porém, se a natureza não se tivesse
degradado pelo pecado, longe de nós pensar que o matrimônio no paraíso
fosse de tal ordem que, para a criação da prole, os órgãos genitais se
excitariam pelo ímpeto da sensualidade, e não por ordem da vontade, como
o pé para andar, as mãos para fazer algo ou a língua para falar. Nem,
como acontece hoje, a integridade virginal não se deterioraria na
concepção dos fetos pela força do ardor impetuoso, mas cederia ao mando
do amor tranquilo. Não haveria a dor e o sangue da virgem na relação
matrimonial, como também não haveria os gemidos da mãe ao dar à luz.
Lógico que há muitas
dificuldades para se acreditar nestes pormenores, já que não podem ser
verificados na atual condição da mortalidade. Degenerada a natureza pelo
pecado, não há como encontrar exemplos daquela pureza primitiva, mas
falamos a fiéis que aprenderam a dar crédito às palavras divinas, mesmo
sem exemplos em que se fundamente a verdade.
Como posso demonstrar
hoje que o homem foi criado do limo da terra sem a participação de
pais, e que a esposa foi formada de sua costela? Tenhamos em conta, de
princípio que a fé acredita no que o olho não vê.
SEGUNDA PARTE
Nos
capítulos XXXVI, XXXVII E XXXVIII, Agostinho mostra que depois do
pecado, são incompreensíveis os atos de casamento com a pureza original;
que o ilícito do casamento não provém da instituição, mas da tentação
da vontade, e finda afirmando que o uso da sensualidade no casamento é
algo legítimo.
Agostinho diz: É impossível também fazer compreender a serenidade no primeiro casamento, sem a paixão da sensualidade, e o movimento dos órgãos genitais, assim como dos outros membros, não pela excitação do ardor desenfreado, mas pelo arbítrio da vontade [ como seria hoje a união conjugal, se não houvesse a injúria do pecado ]
Mas a impossibilidade em fazer compreender não impede que com razão se dê crédito ao que está escrito por autoridade de Deus.
Não se dá agora uma
relação carnal sem o prurido da concupiscência, assim como não acontece
um parto sem dor e gemidos, e que alguém venha ao mundo isento da morte
futura. Contudo, conforme a verdade estampada nas santas Escrituras, não
haveria o gemido da parturiente nem a morte dos homens, se não houvesse
o pecado. Não haveria motivo de se envergonharem os que cobriram os
membros - Adão e Eva - pois, nas mesmas santas letras das Escrituras
está escrito que aconteceu depois do pecado.
Assim, se o movimento
desonesto não lhes houvesse chamado a atenção para os membros por meio
dos olhos, que não estavam fechados, mas que também não estavam abertos,
ou seja, atentos, nada teriam sentido de vergonhoso não tendo a
necessidade de cobrir o corpo, o qual Deus fizera integralmente decente.
Isso porque, se não precedesse o crime, que a desobediência ousara
cometer, não viria depois a ação desonesta que o pudor pretendia cobrir.
É claro, portanto,
que tudo isso não se há de imputar ao matrimônio. Mesmo que não tivesse
havido o pecado, o matrimônio todavia existia, e seu bem não seria
anulado por esse mal, visto que, pelo casamento, esse mal destina-se a
um uso honesto.
Porém, pelo fato de,
na atual condição dos mortais andarem juntos a relação carnal e a
sensualidade, aqueles que não querem ou não sabem distinguir essas
coisas, são levados a não considerar como lícito e honesto o matrimônio,
pelo fato de se censurar a sensualidade. E não percebem que um é o Bem
do matrimônio, do qual ele se gloria, ou seja, a prole, a castidade
conjugal e o sacramento, e outra coisa é não um mal do casamento, mas
concupiscência carnal, da qual o casamento também se envergonha. Mas sem
esse mal não se verifica o bem do casamento, ou seja, a procriação dos
filhos. Por isso, quando se leva a efeito tal operação, procura-se a
privacidade, dispensam-se as testemunhas, se evita a presença dos
próprios filhos, se já nasceram alguns, quando estão na idade de
compreenderem esta operação.
Assim ao casamento, é permitido praticar o que é lícito, mas de modo que não se deixe de esconder o que é contra o pudor.
Daí se conclui que
não nasçam sem o contágio do pecado as crianças, as quais não são
capazes de pecado. Essa constatação não tem fundamento no lícito, mas no
ilícito. Do que é lícito, nasce a natureza; do que é ilícito, o pecado. O autor da natureza que nasce, é Deus que criou o homem, e o uniu à mulher pelo direito nupcial; o autor do pecado é a astúcia do diabo enganador, e também a vontade do homem que consente.
Deus não é autor de
nada disso, a não ser da condenação, por justo juízo, do homem
deliberadamente pecador e de sua descendência.
Assim, o que ainda não havia nascido, é condenado com justiça na raiz prevaricadora. A geração humana submete a criatura humana a essa raiz condenada, da qual a liberta somente a regeneração espiritual.
Assim, o que ainda não havia nascido, é condenado com justiça na raiz prevaricadora. A geração humana submete a criatura humana a essa raiz condenada, da qual a liberta somente a regeneração espiritual.
Desse modo, essa raiz
condenada de forma alguma prejudicará os pais se perseverarem na graça
recebida pela remissão dos pecados. E só poderão perseverar, se não se
relacionarem sexualmente não somente mediante alguma corrupção ilícita,
mas também se realizarem o ato conjugal não levados pela intenção de
procriar filhos, mas pelo desejo de saciar a concupiscência com o prazer
carnal.
Com a finalidade de
evitar infidelidades, o Apóstolo, por condescendência, não por mandato,
concede aos maridos e esposas a não se recusarem um ao outro, a não ser
de comum acordo e por algum tempo, para se entregarem à oração. É
evidente que a condescendência implica alguma culpa.
A relação sexual dos
cônjuges, regulada também pelas leis matrimoniais e que tem por objetivo
a procriação de filhos, é honesta não somente comparada à fornicação,
mas também por si mesma. Mas, devido ao corpo de pecado, ainda não
renovado pela ressurreição, é realizada com alguma excitação animal, da
qual se envergonha a natureza humana. Contudo, essa relação não é
pecado, sempre que a razão lançar mão da sensualidade para o bem e não
se deixar vencer pelo mal.
FONTE:
http://cristaodebereia.blogspot.com.br/2013/12/agostinho-e-o-matrimonio.html
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