Sexualidade, cristianismo e poder
Sexuality, christianity and power
Bruna Suruagy do Amaral Dantas*
Doutoranda em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP,
São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Desde os primeiros séculos da era cristã, a sexualidade foi
amplamente discutida pelo cristianismo, aparecendo nas pregações, nos
tratados teológicos, nas orientações doutrinárias e nos códigos morais.
A instituição eclesiástica preocupou-se com a vida sexual da sociedade
ocidental, dispondo-se a orientá-la segundo suas prescrições. A partir
da revisão da literatura histórica, o presente trabalho demonstra o
interesse do cristianismo pela sexualidade a ponto de tentar torná-la
domínio exclusivo da Igreja. Ao longo da história, a Igreja cristã
desenvolveu mecanismos de observação e instrumentos de controle para
manter desejo e sexo sob sua tutela com o propósito de ampliar seus
dispositivos de poder.
Palavras-chave: Cristianismo, Igreja Católica, Protestantismo, Sexualidade, Desejo, Poder.
ABSTRACT
Since the early centuries of the Christian era, sexuality has been
broadly discussed by Christianity. It has appeared in sermons,
theological treatises, doctrinal orientations and moral codes. The
ecclesiastical institution has been concerned about the sexual life of
Western society, and has decided to guide it according to its
prescriptions. Based on a review of the historical literature, the
present work shows the interest of Christianity in sexuality as it has
tried to make sexuality become the Church’s exclusive domain.
Throughout history, the Christian Church developed observation
mechanisms and control instruments to keep desire and sex under its
protection, aiming to extend its power devices.
Keywords: Christianity, Catholic Church, Protestantism, Sexuality, Desire, Power.
Introdução
O presente artigo visa demonstrar, por meio da revisão bibliográfica
sobre o tema, a estreita relação entre cristianismo e sexualidade no
mundo ocidental, o que não significa reduzir um fenômeno a outro, mas
mostrar que, embora independentes, ambos estão fortemente ligados. A
história do cristianismo faz constante referência à questão da
sexualidade, cujo controle a Igreja procurou assegurar com o objetivo de
consolidar e expandir seu poder político.
Primeiramente, a Igreja recomendou aos fiéis renunciar de forma
definitiva a atividade sexual e conter os desejos, impedindo sua
manifestação. A virgindade foi promovida pelo clero católico ao status de
santidade máxima, estado que todo cristão deveria almejar. Todavia,
diante da recusa de boa parte da sociedade de atender às orientações
eclesiásticas, a Igreja promoveu a sacramentalização do casamento a fim
de ampliar seus poderes de intervenção na intimidade do casal e trazer a
sexualidade para seu domínio. A sexualidade, pois, atuou como
importante dispositivo de poder, garantindo o fortalecimento político
da instituição cristã na sociedade ocidental.
Tratados de virgindade e literatura monástica
Nos primeiros séculos da era cristã, os tratados teológicos elogiavam
a virgindade feminina e atacavam o matrimônio com o propósito de
convencer as mulheres a evitá-lo. Em seus textos, os teólogos advertiam
o público feminino dos perigos do casamento e incentivavam a castidade
das mulheres. Entre os séculos IV e VI, surgiu a literatura monástica,
destinada aos homens que viviam isolados em monastérios e lutavam
constantemente contra seu desejo. Esses escritos abordavam o combate
solitário da fornicação e forneciam aos monges técnicas de observação da
“carne”, para combatê-la.
A literatura monástica distinguia-se dos tratados de virgindade, pois
não fazia menção à continência nem ao casamento. Como os monges não
tinham contato com mulheres, não fazia sentido prescrever-lhes a
abstinência sexual nem precavê-los do matrimônio. Eles estavam isolados
e, por isso, não corriam risco de se casar ou se relacionar
sexualmente. Os documentos monásticos eram destinados a homens que já
tinham optado pela castidade e que, portanto, não precisavam ser
convencidos a abandonar a vida carnal e desistir dos projetos
conjugais. A atividade sexual não era, pois, objeto de preocupação. O
que mais preocupava era o desejo que atravessava as grades dos
mosteiros, perturbava os monges e ameaçava a santidade alcançada. Era
preciso travar uma guerra contra ele para conservar a castidade da
alma.
Enquanto os tratados dirigidos às mulheres discutiam pouco a questão
do desejo e davam mais destaque aos perigos do sexo, a literatura
monástica parecia obcecada pelas paixões que atormentavam o homem
solitário, aparentemente protegido das tentações femininas. Ainda que
distantes fisicamente, as mulheres importunavam os monges em seus
sonhos, pensamentos e imaginações, excitando-os e despertando-lhes as
vontades da “carne”. Por isso, eles eram desafiados a vigiar o desejo,
reconhecer suas artimanhas e expurgá-lo da mente e do corpo. O sexo não
lhes causava preocupação, uma vez que estavam protegidos dele. “[...]
parece ser mais o imaginário do desejo do que o perigo do ato sexual o
que atrai a atenção dos monges”(VAINFAS, 1986, p. 18).
A vida monástica pressupõe um combate espiritual permanente, que
consiste em “[...] dominar a imaginação, neutralizar os sentimentos e
represar o mais singelo despertar do desejo”(VAINFAS, 1986, p. 18).
Vários exercícios ascéticos foram desenvolvidos para fragilizar o corpo e
purificar a alma. Práticas de mutilação corporal foram adotadas,
visando inibir os instintos. Era necessário realizar um árduo trabalho
de vigilância e controle dos pensamentos, imagens e desejos na
tentativa de inibir os movimentos involuntários do corpo e da alma,
restringir o poder da vontade e anular a concupiscência. Era contra o
desejo erótico que se deveria lutar para alcançar a castidade. As mais
discretas manifestações da “carne” deveriam ser captadas e eliminadas.
Conforme Foucault (1985), a vida monástica modificou a questão da
renúncia sexual. Não era suficiente apenas obedecer às prescrições
morais para evitar atitudes reprováveis. Comportar-se em conformidade
com as leis cristãs não bastava. Era preciso penetrar nos labirintos da
alma e vasculhá-los para descobrir o que estava escondido. Os monges
deveriam observar e perscrutar a própria dimensão subjetiva para
controlar o desejo. Não houve nessa época o desenvolvimento de novas
interdições, mas o surgimento de “tecnologias de si” mais aprimoradas e
complexas. O indivíduo foi convidado a realizar intenso trabalho de
vigilância sobre si a fim de expurgar o pecado que se encontrava na
esfera da não-ação. Esse era o novo território que a atenção do monge
deveria percorrer e explorar.
O que está em jogo não é um código de atos permitidos ou proibidos, é toda uma técnica para analisar e diagnosticar o pensamento, suas origens, suas qualidades, seus perigos, seus poderes de sedução, e todas as forças obscuras que podem se ocultar sob o aspecto que ele apresenta (FOUCAULT, 1985, p. 37).
Enquanto
a literatura monástica assumia uma posição clara e coerente em relação
às instruções que dava aos monges, os tratados teológicos pareciam
confusos e contraditórios quando orientavam os leigos. Os teólogos
adotavam posturas ambíguas quando discutiam a questão do casamento.
Para atrair mais fiéis, a Igreja defendia o matrimônio, tratando-o como
um paliativo para aqueles que não eram capazes de dedicar-se à
abstinência. Paradoxalmente, o censurava, opondo-se à sua realização. A
despeito da objeção eclesiástica à união conjugal, ela se manteve
firme na sociedade romana. Era uma prática recorrente na aristocracia e
permaneceu durante certo tempo restrita ao espaço doméstico, sem sofrer
a interferência da Igreja, em virtude da indefinição e hesitação da
moral cristã quanto ao casamento.
Sacramentalização do matrimônio e regulamentação do celibato
Até o século IX, o matrimônio era uma instituição laica e privada. No
entanto, era reconhecido publicamente, visto que a comunidade local
testemunhava sua ocorrência. A Igreja não participava da celebração. Os
pais dos noivos eram os únicos responsáveis por todos os preparativos
da festa. O casamento representava uma aliança política e um contrato
comercial, firmados entre as famílias. Após a negociação, os pais da
noiva forneciam o dote à família do rapaz e se iniciava a cerimônia.
Era o pai do noivo que celebrava as bodas e oficializava o contrato. O
casal era levado ao leito, sendo acompanhado por parentes e convidados,
que testemunhavam o acontecimento. Após despirem-se, os esposos
deitavam-se e o pai do noivo abençoava a união. Ao final da solenidade, o
público retirava-se do recinto para deixar os cônjuges a sós. Enquanto
as pessoas aproveitavam a festa, o casal se relacionava sexualmente.
A partir do século IX, a Igreja começou a interferir timidamente nos
casamentos da época, sem, no entanto, dirigir a cerimônia. Sua posição
em relação ao matrimônio ainda não era clara nem coerente, o que
dificultava sua participação nas bodas e na vida conjugal do casal.
“Faltava-lhe, antes de tudo, a definição clara de uma ética
matrimonial, o abandono da reticência frente ao casamento”(VAINFAS,
1986, p. 30). De acordo com Ariès (1985a), a instituição cristã demorou
a elaborar seu projeto de união conjugal, definir seu modelo
matrimonial e prescrevê-lo aos fiéis, sendo-lhe difícil penetrar no
universo nupcial. Ela permaneceu cautelosa em relação ao casamento,
porque eram grandes as divergências que teria de enfrentar. Enquanto a
aristocracia não pretendia abandonar o modelo laico de casamento, alguns
grupos cristãos opunham-se veementemente às práticas conjugais.
O padre ainda não era um personagem ilustre e indispensável na
celebração do matrimônio, mas já participava de algumas cerimônias na
casa dos noivos, apenas quando era convidado. Sua função restringia-se a
abençoar o leito nupcial no momento em que os cônjuges estavam
deitados. Antes do século XII, a Igreja não teve condições de
participar efetivamente do casamento laico. Sua intervenção foi branda e
gradativa. Apenas orientava e aconselhava o casal, nada podendo
impor-lhe. No século XII, a Igreja perdeu a timidez e passou a
interferir, de fato, nas alianças conjugais, induzindo os cristãos a
seguir seu modelo matrimonial, cujos principais preceitos eram a
indissolubilidade conjugal e a monogamia. Ela não estava interessada em
apenas dar conselhos e orientações e começou a impor seu ideal de
casamento e a ameaçar os transgressores com a excomunhão. A cerimônia
nupcial foi transferida da casa dos noivos para a entrada da Igreja, o
que garantiu ao padre celebrá-la. O matrimônio passou a ser uma
instituição pública e religiosa. Segundo Ariès (1985a), a mudança de
local do rito matrimonial foi “uma verdadeira revolução”.
Contudo, a Igreja só conseguiu exercer poder legítimo sobre a vida
conjugal, quando promoveu a sacramentalização do matrimônio nos séculos
XII e XIII. Era preciso tornar o casamento um sacramento, uma
instituição divina, para que a hierarquia eclesiástica pudesse
controlá-lo e tivesse plenos poderes sobre ele. Desse modo, o
matrimônio foi transformado em monopólio da Igreja católica. Nessa
mesma época, o celibato clerical foi regulamentado a fim de que os
teólogos tivessem autoridade para normatizar e disciplinar a relação
conjugal. O casamento, até então laico e profano, ao ser sacramentado,
ficou submetido à tutela do corpo sacerdotal, que adquiriu legitimidade
em função da prática da castidade. A continência eclesiástica ampliava
a supremacia do clero, afirmando sua competência para moralizar a
intimidade dos cônjuges. Apenas sacerdotes castos eram autorizados a
penetrar na vida íntima do casal e regular o comportamento conjugal.
Ao clero, homens do mundo espiritual, deveria caber a castidade e o poder. Aos leigos, homens do mundo profano, caberia o matrimônio e a obediência. [...] O triunfo do celibato no século XIII foi, assim, um capítulo essencial na construção do poder da Igreja no Ocidente medieval (VAINFAS, 1986, p. 34-35).
A
sacramentalização do casamento assegurou a consolidação do poder
político da Igreja e determinou a formulação de um código de conduta
moral sistemático e minucioso. Já que a união conjugal passou a ser uma
união sagrada, autorizada pelo clero, tornou-se necessário
regulamentá-la. A indissolubilidade conjugal e a monogamia apareceram
como emblemas do casamento cristão, embora não tenham sido invenções do
cristianismo. A Igreja teve de enfrentar uma forte oposição
aristocrática para inserir a estabilidade matrimonial no rol de normas a
ser seguido, pois os aristocratas estavam habituados a repudiar suas
mulheres e contraírem novos casamentos. Ela tentou ser flexível e
introduziu outras injunções antes de proibir expressamente a dissolução
do vínculo matrimonial. Gradativamente, o modelo cristão de casamento,
monogâmico e indissolúvel, foi prevalecendo sobre o modelo laico
aristocrático.
Outras prescrições foram sendo desenvolvidas e apresentadas. O ato
sexual começou a ser tratado como obrigação dos cônjuges, não devendo,
no entanto, ser acompanhado por desejo erótico. Apesar de ser
obrigatório, o sexo no matrimônio foi considerado pecado por alguns
sacerdotes até o século XV. O casamento não era capaz de purificá-lo,
embora reduzisse sua imundície. Muitos teólogos mantiveram-se
reticentes em relação às práticas sexuais entre cônjuges, apesar da
sacramentalização do matrimônio. A sexualidade conjugal deveria
restringir-se à reprodução, o que não significava que estava livre do
estigma do pecado. A posição teológica do papa Gregório Magno
permaneceu viva durante muito tempo no meio eclesiástico:“[...] é quase
impossível sair puro do abraço conjugal”(FLANDRIN, 1985, p. 136).
Contudo, entre os séculos XVI e XVII, alguns teólogos não mais
tratavam a união conjugal como pecado, desde que os esposos não
criassem obstáculos à procriação, que continuava sendo a principal
finalidade do ato sexual. O casamento, ao preservar sua função
reprodutiva, deixou de ser um mal tolerado pela Igreja e passou a ser
um acontecimento divino, que vinculava o sexo à constituição e
propagação da espécie humana. O casal podia entregar-se livremente um
ao outro, sem, no entanto, impedir a reprodução. O prazer, até então
abominado, podia acompanhar a atividade sexual destinada à geração de
filhos. “Não é mais a busca do prazer que é condenada: é a busca
‘apenas do prazer’, em outras palavras, relações sexuais amputadas de
sua virtude procriadora”(FLANDRIN, 1985, p. 137).
Portanto, não se podia exigir que a vida conjugal prescindisse da
atividade sexual. Quando o casamento foi sacramentado, o ato sexual
tornou-se obrigação, não apenas para assegurar a reprodução, mas
sobretudo para evitar a concupiscência. Baseada em trechos da mensagem
de Paulo aos gentios, a Igreja impôs ao casal cristão o preceito da
dívida conjugal. Cada cônjuge possuía uma dívida sexual, que tinha sido
contraída após a realização do matrimônio. O pagamento do débito
consistia no consentimento do ato sexual, quando solicitado por um dos
esposos. Ambos deveriam constantemente saldar suas dívidas sem
contestação. O débito conjugal garantia a prática sexual circunscrita,
inibindo a concupiscência e o adultério. Era, portanto, uma forma de
conter o desejo, restringindo-o ao casamento. Tornou-se o símbolo do
sacramento matrimonial e o único meio de viabilizar a procriação.
Nem a mulher nem o marido poderiam recusar-se a pagar sua dívida.
Quando se casavam, passavam a ser automaticamente devedores. Deviam ao
outro o ato sexual. Era preciso pedir ao parceiro que saldasse o débito
contraído. Os teólogos acreditavam que a relação carnal só deveria
ocorrer quando um dos cônjuges exigia o cumprimento do contrato
matrimonial e o pagamento da dívida. A mulher também tinha direito de
cobrar do homem o que lhe era devido. Parecia que, na esfera da
sexualidade, a igualdade entre os cônjuges estava assegurada.
Entretanto, os sacerdotes criaram uma regra que colocava em risco os
direitos sexuais das esposas e contestava a premissa da igualdade
sexual. Segundo os teólogos da Baixa Idade Média, foi concedido à
mulher o que chamavam de privilégio. Decidiram poupá-la de maiores
constrangimentos e, por isso, resolveram “liberá-la” da necessidade de
pedir ao marido que pagasse o que lhe devia.
Ela não precisava reivindicar explicitamente o pagamento da dívida,
cabendo ao esposo perceber seu desejo silencioso. Ela não precisava
expor-se, uma vez que era tímida e acanhada. Não deveria passar pelo
constrangimento de expressar claramente suas vontades. Caso fosse
obrigada a fazê-lo, iria sentir-se envergonhada. Bastava demonstrar com
gestos e expressões faciais o que desejava. O marido deveria estar
atento para captar os sinais que emitia, sendo obrigado a atender suas
solicitações. Cabia a ele perceber os sinais que sua esposa lhe
fornecia timidamente. Caso não notasse nada, a dívida não seria paga e a
mulher se via impedida de protestar contra o não pagamento do débito.
No caso do marido, a situação era muito diferente. Para que a esposa
saldasse a dívida, ele deveria exigir explicitamente seus direitos. A
ele era permitido solicitar com clareza o ato sexual. Se a mulher
repudiasse o sexo por pudor ou asco, era solicitada a intervenção do
confessor, que agia como orientador sexual e juiz. “[...] os esposos
não estavam sós no leito conjugal: a sombra do confessor presidia aos
seus amores”(FLANDRIN, 1985, p. 148).
Nos séculos XII e XIII, a atividade sexual passou a ser considerada
um ritual sagrado, que estava, portanto, sob o domínio da Igreja. Cabia
ao sacerdote discipliná-la e regulamentá-la. A vida íntima do casal
lhe competia. A prática sexual deveria ser contida e recatada. As
extravagâncias e excentricidades eram repudiadas e proscritas.
“Obrigava-se ao ato, mas condenava-se o excesso...”(VAINFAS, 1986, p.
41). O contato demasiadamente erótico e ardente era condenado pela
cúpula cristã, sobretudo na relação conjugal, que se tornara sagrada.
Era preciso, portanto, respeitá-la e preservá-la da promiscuidade, sem,
no entanto, renunciar ao ato sexual. “Em nome da procriação, toleraram
o desejo, vigiaram o prazer. Salvou-se a cópula: sacramentada,
ritualizada e racionalizada para a propagação da espécie”(VAINFAS, 1986,
p. 43).
Normatização da vida conjugal
Após autorizar a atividade sexual no casamento, a Igreja resolveu
controlá-la por meio de uma extensa legislação canônica. Visava, desse
modo, regular a instituição matrimonial. Foram elaborados códigos
jurídico-teológicos que discriminavam detalhadamente os atos permitidos
e os proibidos. Nada escapou ao poder das comissões teológicas. Cada
gesto, posição, palavra e pensamento foi avaliado, classificado,
codificado e regulamentado. Houve, portanto, um forte processo de
racionalização do matrimônio, que procurava garantir a austeridade
conjugal.
O ato sexual foi proibido nos dias sagrados, nas celebrações
religiosas, aos domingos, nos períodos de menstruação, gravidez,
amamentação e nos quarenta dias após o parto. Os teólogos, pois,
restringiram consideravelmente o tempo dedicado à prática sexual. Até o
século XVI, os cônjuges não podiam se relacionar sexualmente em 273
dias do ano. Sobravam poucos dias para o sexo, que paradoxalmente havia
se tornado uma obrigação. A abstinência continuava sendo discretamente
prestigiada. Os códigos canônicos também davam destaque à questão da
posição sexual. Durante o coito, apenas era admitido que o homem se
colocasse sobre a mulher, o que reforçava a superioridade masculina. Era
inadmissível que a esposa ficasse em cima do marido no momento do ato
sexual.
Além de ter produzido um conjunto de leis destinado a regularizar a
relação conjugal, a Igreja ainda desenvolveu um catálogo dos atos
sexuais proibidos e dos pecados da “carne” conhecidos pelo nome de
luxúria. Foram realizadas a categorização das luxúrias, a classificação
das transgressões e a sistematização dos pecados carnais. Dentre os
inúmeros atos luxuriosos, destacava-se a masturbação, que, a partir do
século XV, foi muito abordada pelos manuais confessionais e tratados
penitenciais. Prática solitária e estéril, o onanismo desagradava os
teólogos, pois destinava-se unicamente à obtenção do prazer erótico,
não servindo à finalidade procriativa. Entretanto, apesar de ser
considerado pecado grave, as penitências eram brandas.
A sodomia, cujos significados eram bastante variados, também ganhou
destaque nas práticas confessionais medievais, sobretudo nos séculos
XIII e XIV. Símbolo do descontrole sexual e ato contrário à natureza, a
sodomia representava os coitos anais e orais e as relações entre
pessoas do mesmo sexo, especialmente entre homens. Conforme Ariès
(1985b), o que Paulo condenava com mais ênfase era a passividade sexual
masculina. As punições no caso de sodomia masculina deveriam ser mais
severas. Na Idade Média, as penas eram mais rigorosas para os homens
sodomitas do que para as mulheres. Antes do século XII, as penitências
eram leves. Contudo, entre os séculos XIII e XIV, as condenações
passaram a ser muito violentas. Os sodomitas eram castrados ou
condenados à morte na fogueira. Na lista de classificação das luxúrias,
a sodomia foi se tornando o pecado da “carne” por excelência.
Entre os séculos XII e XVI, os documentos teológicos mantiveram-se
rígidos em relação aos prazeres sexuais. Os textos cristãos
consideravam-nos repugnantes, denunciavam a vulgaridade, exortavam os
fiéis a rejeitar atos promíscuos e ressaltavam as conseqüências
funestas das condutas indecorosas. Todavia, a prática penitencial ora
parecia condescendente com os pecadores ora aplicava punições severas e
violentas. Ela oscilava, portanto, entre a tolerância e a extrema
rigidez. Enquanto os teólogos eram rigorosos em seus escritos, os
confessores na prática penitencial ora agiam de forma indulgente ora
procediam com intransigência.
Segundo Vainfas (1986), a partir do século XVI, houve maior
flexibilização dos teólogos em relação ao ato conjugal. Eles começaram a
perceber que, apesar de vigiar a intimidade do casal, não conseguiriam
controlar de forma absoluta relações tão secretas e privadas e, por
essa razão, flexibilizaram minimamente as estratégias adotadas e as
penalidades aplicadas. Tinham consciência de que, mesmo tentando
descobrir os segredos do vínculo matrimonial, alguns espaços
permaneceriam invioláveis e ocultos. A eles não teriam acesso. Por isso,
pouco a pouco, foram assumindo posições mais flexíveis e indulgentes, o
que não significa que perderam a austeridade. A prática judicial
passou a tolerar situações conjugais até então inadmissíveis.
É interessante observar o duplo caráter assumido pelo sistema penitencial: de um lado, representava uma hierarquia de pecados que o clero deveria vigiar e punir; mas, de outro, expressava um 'sistema de indulgências' em flagrante desacordo com a retórica teológica. [...] Sistema ao mesmo tempo penitencial e indulgente, eis o paradoxo da prática judiciária cristã (VAINFAS, 1986, p. 74-75).
O
sistema judicial cristão aplicava penas rígidas àqueles que cometessem
pecados sexuais capazes de fragilizar a estrutura política e social da
Igreja, ameaçar a família e dissolver o casamento. Os comportamentos
sexuais fortemente reprovados pelo discurso teológico não eram
necessariamente os mais perseguidos pelo tribunal eclesiástico, pois
muitos deles, apesar de repugnantes, não ameaçavam a ordem política e
social vigente. Os atos ilícitos eram mais graves quando cometidos na
relação conjugal, sendo, desse modo, severamente punidos. Os delitos
extraconjugais, embora fossem censurados, eram mais facilmente
tolerados. A contradição, portanto, caracteriza a moral cristã. Não há
um único sistema moral, homogêneo e coerente, criado pelo cristianismo,
mas inúmeras tendências, heterogêneas e ambíguas, que compõem a
doutrina cristã.
A Prática da Confissão
Conforme Foucault (1999a), não há como negar que a ética cristã de
modo geral é prescritiva e legalista. A Igreja preocupou-se em
organizar códigos universais de conduta, que definissem os atos
proibidos e os permitidos. As normas deveriam alcançar a
universalidade, passando a ser seguidas por todos os indivíduos. O
cristianismo, porém, de acordo com Foucault (2004), não inventou os
preceitos morais que começou a impor. Apenas os compilou e os
universalizou, dando-lhes a forma da lei. Não apresentou novas
prescrições à sexualidade, mas criou técnicas e mecanismos de poder
capazes de impor a obediência aos imperativos morais já existentes.
Instrumentos de poder foram cuidadosamente produzidos para induzir os
fiéis a confidenciar suas verdades ao sacerdote. Desenvolveu-se,
portanto, no século XV a prática da confissão, que visava extrair dos
cristãos as informações mais íntimas.
A ética cristã não teve pudores ao determinar que os fiéis exibissem
sua vida sexual e exigir que tudo fosse dito a respeito da intimidade
do casal. Era preciso tudo mostrar. Os confessores procuravam sinais
dos prazeres da “carne” nos pensamentos, sonhos, imagens e
representações. Tudo precisava ser vasculhado. Nos atos mais singelos e
inocentes, o desejo poderia se ocultar. Por isso, era necessário
indagar exaustivamente ao cristão a fim de encontrar o que estava
encoberto. As perguntas mais audaciosas e indiscretas deveriam ser
feitas e não eram permitidas respostas evasivas. Por mais imoral que
fosse a indagação, o fiel era constrangido a respondê-la sem reservas e
com honestidade, não podendo se esquivar dela.
Segundo Almeida (1993), os manuais dos confessores instruíam os
sacerdotes a inquirir o pecador de modo a obter a confissão e ensinavam
de que forma estimular o fiel a relatar as minúcias de sua vida
íntima. No século XVI, o Frei Rodrigo de Porto mostrou que os padres
não deveriam ser reservados no momento do interrogatório. “O confessor é
obrigado a perguntar o que vê, crê, e adverte ser necessário para que a
confissão seja inteira e frutuosa: como o que lhe parece que o
penitente cala por ignorância, inadvertência ou
esquecimento...”(ALMEIDA, 1993, p. 63). Não era preciso, no entanto,
perguntar quantas vezes o ato foi praticado, visto que a quantidade não
alterava a penalidade. Porém, era imprescindível esclarecer em que
circunstâncias e de que forma o ato foi efetuado, pois sua morfologia e
as condições em que foi realizado podiam caracterizar vários pecados.
Os manuais, pois, auxiliavam o sacerdote a compreender o cenário em que
ocorreu o pecado.
Muitos criticavam com veemência a literatura confessional e os
procedimentos indecorosos dos confessores, uma vez que exploravam a
promiscuidade e mostravam com indiscrição os pecados da “carne” àqueles
que ainda não os conheciam. Algumas correntes puritanas da sociedade
moderna espantaram-se com a indecência desses manuais e opuseram-se às
práticas confessionais, pois acreditavam que poderiam instigar a
imoralidade. “[...] consideraram escandaloso o estilo desabusado e
franco com que estes manuais tratavam dos temas da sexualidade, um
verdadeiro convite ao pecado feito às almas inocentes”(ALMEIDA, 1993,
p. 9). Alguns temiam que a confissão despertasse desejos adormecidos e
desconhecidos.
Apesar desse temor, aos fiéis foi imposta uma “confissão exaustiva e
permanente” (FOUCAULT, 2004, p. 70). Eles deveriam falar daquilo que
certamente não conheciam. Os segredos do sexo deveriam ser confessados.
O padre conduzia o interrogatório de tal maneira que tinha acesso às
informações mais sigilosas. Era através desse tribunal confessional que
a verdade do sujeito, desconhecida dele e do próprio sacerdote, ia
sendo construída. Além de fazer perguntas capciosas para obter do
crente revelações importantes, o padre ainda lhe determinava que
cotidianamente observasse a si mesmo para descobrir tudo que estava
oculto em seu interior. Era preciso estar atento a si em cada momento
do dia para apreender o que até então nunca havia se manifestado. A
pastoral da “carne” desenvolveu e aperfeiçoou tecnologias de si que
possibilitaram ao indivíduo examinar-se a fim de decifrar os desejos
mais sutis.
[...] tudo deve ser dito. Uma dupla evolução tende a fazer, da carne, a origem de todos os pecados e a deslocar o momento do ato em si para a inquietação do desejo, tão difícil de perceber e formular, pois que é um mal que atinge todo homem e sob as mais secretas formas: ‘Examinai, portanto, diligentemente, todas as faculdades de vossa alma, a memória, o entendimento, a vontade. Examinai, também, com exatidão todos os vossos sentidos... Examinai, ainda, todos os vossos pensamentos, todas as vossas palavras e todas as vossas ações. Examinai, mesmo, até os vossos sonhos para saber se, acordados, não lhes teríeis dado o vosso consentimento... Enfim, não creiais que nessa matéria tão melindrosa e tão perigosa, exista qualquer coisa de pequeno e de leve’ (FOUCALT, 1999b, p. 23).
Exigências
que nos primeiros séculos da era cristã restringiam-se à vida
monástica, nos séculos XVI e XVII tornaram-se universais. Todos
deveriam segui-las. Os cristãos eram instados a vigiar-se
constantemente a fim de desvelar os pensamentos mais íntimos e os
desejos mais eróticos. Era preciso percorrer os labirintos da alma e os
lugares mais recônditos do interior de si para verificar se havia
vestígios de pecado. Era recomendado esquadrinhar incessantemente as
vontades do coração e os anseios da “carne”. O desejo precisava ser
observado, “dissecado” e analisado. Segundo Foucault (1998), a pastoral
cristã propôs a “hermenêutica do desejo” e a “elucidação de si”
visando o controle dos prazeres e a renúncia da “carne”. Só através da
“decifração de si” era possível abandonar o desejo. As seduções,
fantasias e tentações encontradas deveriam ser rejeitadas. O fiel
obediente, portanto, realizava sobre si um intenso trabalho de inspeção
para em seguida repudiar o que lhe parecia vulgar e devasso.
Nos séculos XV, XVI e XVII, os manuais confessionais gradativamente
passaram a ressaltar a importância dos pensamentos, desejos, imagens e
vontades. Apresentaram ao penitente algumas advertências quanto ao
perigo dos sonhos, imaginações e recordações. O pecado não se
restringia ao ato. Os pensamentos lascivos também eram pecaminosos. Os
confessores começaram a questionar constantemente o desejo. Era preciso
mapear a mente, o coração e a alma para encontrá-lo, decifrá-lo e
contê-lo. A imaginação parecia mais ameaçadora que o ato em si, pois
agia em silêncio, não sendo muitas vezes percebida. O pensamento, na
moral cristã, passou a ser tão importante quanto a realização do
desejo. Azpilcueta Nazarro, em seus escritos, afirmou categoricamente
que “os pecados por vontade, por palavra e por obra são de uma mesma
espécie. Por conseguinte o estupro mental, que é a vontade de ter
cópula carnal com uma virgem, será da mesma espécie que o estupro real,
que é a cópula”(ALMEIDA, 1993, p. 66).
Imaginar o pecado era tão grave quanto cometê-lo. Desse modo, parece
grande o rigor do tribunal eclesiástico. Contudo, a Igreja criou
estratégias para flexibilizar as punições. Ao julgar os pensamentos e
atos indecentes, o confessor deveria investigar se houvera intenção ou
não de pecar. Era-lhe recomendado perguntar aos fiéis se o pecado tinha
sido intencional. Normalmente, para abrandar as penas ou se livrar
delas, eles respondiam negativamente. O critério da intencionalidade
lhes permitia driblar as regras eclesiásticas e minimizava a rigidez da
Igreja e do sacerdote em relação às penitências. O que mais importava,
portanto, não era o pecado em si, mas a intenção que o acompanhava. A
intencionalidade do pensamento e do ato era o que possibilitava avaliar a
gravidade do pecado. Uma ação não intencionada era mais tolerada do
que uma imaginação intencional. Caso não tivesse havido intenção, o
pecado era considerado leve. O fiel seria absolvido, não sofrendo
nenhuma punição.
Os manuais de confessores pareciam rígidos, mas na realidade criavam
condições para o fiel driblar as normas e suavizar as punições. Nas
leis religiosas, havia brechas que possibilitavam a transgressão sem
penalidades severas. Alguns comportamentos moralmente suspeitos foram
tolerados pela Igreja, a despeito de serem condenados pela literatura
confessional. Os manuais portugueses dos séculos XVI e XVII, que
influenciaram os documentos teológicos produzidos no Brasil, eram
imperativos e assumiam uma conotação legalista, como se fossem uma
legislação civil. As leis civis assemelhavam-se aos preceitos
eclesiásticos. Crime e pecado se confundiam. Havia apenas uma diferença
entre ambos: enquanto o crime restringia-se ao ato, o pecado
associava-se ainda aos pensamentos, desejos, fantasias e imagens.
Os manuais confessionais no Brasil
No Brasil, nos séculos XVI e XVII, os manuais vigentes eram todos
provenientes de Portugal. Ainda não tinha sido produzida nenhuma
literatura religiosa brasileira. As leis eclesiásticas portuguesas
interferiam de algum modo na realidade da colônia. Embora os códigos de
conduta da Igreja não fossem efetivamente seguidos, passaram a ser
referenciais de comportamento. Muitos não conseguiam obedecer aos
imperativos cristãos, mas os haviam assimilado. A ética familiar e a
moral sexual, elaboradas pela cúpula clerical, tornaram-se parâmetros
de conduta, apesar de não serem observadas. A realidade brasileira
distinguia-se das prescrições cristãs.
O modelo de família patriarcal prevalecia no Brasil. A sociedade
brasileira era rural, escravagista e poligâmica. Os senhores de engenho
costumavam ter contato sexual com as escravas e criadas, o que
favoreceu a miscigenação. Entretanto, consideravam suas práticas
sexuais pecados dos quais não conseguiam se livrar. Tentavam encontrar
brechas nas leis religiosas para subvertê-las. A ordem dos jesuítas
flexibilizou as normas cristãs com o propósito de aproximá-las da vida
cotidiana da colônia. Cada caso era analisado de forma particular. A
regra geral adaptava-se a cada situação específica. A lei universal
cedeu lugar às circunstâncias particulares. A exceção à regra foi um
mecanismo desenvolvido pelos jesuítas que privilegiava as práticas
singulares em detrimento dos preceitos universais. Tolerava-se,
portanto, a transgressão individual, reduzindo sua gravidade.
Os códigos cristãos eram moralmente rigorosos. Poucos conseguiam
obedecê-los. Criaram-se, portanto, estratégias para contornar a
legislação eclesiástica. Os imperativos religiosos eram referências
morais inatingíveis, difíceis de serem seguidas. Por isso, os
sacerdotes procuravam julgar as ações cotidianas com moderação e
flexibilidade. O pecado tornou-se algo trivial e rotineiro, sendo
impossível eliminá-lo. Era preciso aprender a conviver com ele. “Na
mesma medida em que tudo era pecado, quase nada era efetivamente um
grave pecado, quase nada era objeto de escândalo e indignação. Havia
como que uma banalização da falta moral”(ALMEIDA, 1993, p. 125).O
pecado era condenado nos tratados teológicos e tolerado nas práticas
diárias. Era necessário tratá-lo de modo condescendente, pois se
encontrava em todos os lugares, inclusive nos mosteiros e conventos.
Sexualidade nos conventos
Segundo Miranda (1998), nos séculos XVII e XVIII, a sexualidade
alojava-se nos claustros das freiras, que utilizavam inúmeros
expedientes para afugentá-la. O desejo sexual penetrava sutilmente nos
lugares sagrados. A sacralidade excessiva não impedia a manifestação
silenciosa das paixões; pelo contrário, a instigava. O isolamento
religioso favorecia a espiritualização do corpo e a erotização da alma.
O corpo estava protegido das seduções da “carne”, uma vez que as
freiras encontravam-se trancadas nos conventos, distantes dos contatos
físicos. Entretanto, a alma era atormentada por desejos, pensamentos e
imagens. O erotismo fazia-se presente e afligia a vida das mulheres
enclausuradas, que se mutilavam para dissipá-lo.
[...] a interdição sexual teve a função de afrodisíaco. (...) Em resposta à demonização do sexo, os instintos de Eros se manifestavam dentro dos mosteiros através de alucinações e extravasamentos, como o refinamento cruel da autoflagelação do corpo, os desfalecimentos ambíguos, as convulsões eróticas do êxtase, a homossexualidade e a própria heterossexualidade, com o testemunho dos bastardos (MIRANDA, 1998, p. 5-6).
A
sensualidade misturava-se com a santidade. Conforme Miranda (1998), nos
séculos XVII e XVIII, no Brasil e em Portugal, muitas mulheres foram
internadas em mosteiros por diversas razões que não eram
necessariamente os interesses religiosos. Algumas eram levadas aos
conventos e mantidas neles por serem ousadas sexualmente, sedutoras,
vulgares, desobedientes e insubmissas. Mulheres sensuais e atraentes,
que cometeram algum pecado sexual, ocupavam as celas dos claustros,
sendo perseguidas por suas fantasias eróticas. Os mosteiros ainda
recebiam moças ameaçadas pela possibilidade de entregar-se a uma paixão,
prevenindo-as dos pecados da “carne”. Conviviam nesse ambiente
supostamente sagrado meninas virgens e mulheres sensuais, moças
recatadas e amantes apaixonadas. Coexistiam a castidade e a luxúria.
Cartas e poesias eróticas foram produzidas nos conventos sagrados.
As freiras, vestidas de trajes religiosos capazes de cobrir o corpo
inteiro, seduziam homens, que mantinham com elas relações platônicas.
Freiráticos, eles adoravam as monjas e se esforçavam para vê-las com o
propósito de apreciar sua beleza e sensualidade. Eles sabiam que não
podiam tocá-las, mas procuravam encontrá-las para manifestar seu amor,
dirigir-lhes olhares calorosos e expressar seu desejo. Essas mulheres,
no entanto, pareciam distantes e inatingíveis. Seus admiradores
inicialmente não conseguiam estabelecer com elas contato e, por essa
razão, decidiam revelar seu amor por meio de poesias e cartas. Elas
recebiam as correspondências, porém não as respondiam. Com o tempo, em
virtude da persistência de alguns admiradores, as freiras passavam a
compartilhar das declarações de amor.
Começava-se, assim, uma aproximação afetiva que podia culminar em
encontros íntimos. Seduzida pelos encantos de seu pretendente, a monja o
convidava às cerimônias religiosas a fim de encontrá-lo, momento em
que trocavam olhares lascivos e demonstravam o desejo que sentiam de
envolver-se sexualmente. Tudo era muito sigiloso. “Já que tem que ser, que seja em segredo” (MIRANDA,
1998, p. 8). A aproximação ocorria de forma gradativa. No início,
encontravam-se nos confessionários. Conversavam, mas não podiam
olhar-se. As visitas iam se tornando cada vez mais freqüentes.
Entretanto, eles não conseguiam aproximar-se fisicamente. Grades e
ferros os separavam, impedindo-os de tocarem-se. A escuridão
dificultava a visão, porém animava a imaginação. “Elas fruíam a volúpia de serem desejadas e admiradas; eles, a da violação do pudor feminino e do dogma religioso” (MIRANDA, 1998, p. 8).
Muitos freiráticos não se contentaram em permanecer do lado de fora
dos mosteiros, sem autorização para entrar num lugar apenas reservado
às mulheres. Apesar dos obstáculos, não desistiram. Distribuíam
presentes àqueles que eram responsáveis por manter as celas fechadas,
subornavam abadessas e faziam aos padres contribuições generosas a fim
de obter permissão para entrar nos conventos ou enviar livremente suas
cartas. Desse modo, alguns pretendentes conseguiam entrar nos mosteiros
para visitar seu objeto de desejo, tendo como cúmplices padres e
monjas. Outros, por sua vez, pulavam os altos muros da fortaleza
espiritual ou vestiam-se disfarçadamente com hábito de freira. “Nas
celas os catres rangiam, os corpos alvos das freiras suavam sob o calor
dos nobres, estudantes, desembargadores, provinciais, infantes. Os
gemidos eram abafados com beijos” (MIRANDA, 1998, p. 9). Carícias eram
trocadas no espaço sagrado.
Na maioria dos claustros portugueses e brasileiros, as freiras
possuíam seus namorados e amantes, alguns dos quais tinham livre acesso
aos mosteiros, lugar onde marcavam encontros e entregavam-se aos
prazeres sexuais. As monjas eram consideradas grandes amantes, as mais
belas e atraentes dentre as mulheres. Contudo, eram também tratadas
como seres perigosos que ameaçavam a estabilidade dos homens. As
poesias freiráticas, muito recorrentes em Portugal, exaltavam sua
sensualidade, a promiscuidade dos seus toques e a lascívia do seu corpo.
As freiras eram simultaneamente admiradas e repudiadas nos escritos
eróticos, que divulgavam os envolvimentos até então secretos. Os poemas
freiráticos difundiram-se e se tornaram documentos públicos, causando
certa indignação, pois adotavam uma linguagem erótica e passional para
referir-se a mulheres supostamente castas.
Que és puta provarei, minha Terência/ Puta, e mais puta do que as mesmas putas/ Tu és freira, e aqueloutras, bem que inuptas/ Sequer voto não têm de continência/Se elas para mil fodas têm potência/ Tu em cem mil punhetas as comutas/ Tu com o frade na grade em seco lutas/ És putíssima tu, por conseqüência/ Putíssima! Ainda mais; muito bem podes/ Levar de reputíssima o letreiro/ Replicas? É melhor que te acomodes/ Elas levam a porra do brejeiro/ Do negro, do lacaio, e tu? – tu fodes/ Com o retrato da porra um dia inteiro. (CARVALHO apud MIRANDA, 1998, p. 98).
Profusão dos discursos sobre a sexualidade
Os discursos sobre a sexualidade foram se multiplicando nas Igrejas e
conventos desde o início do cristianismo. A hierarquia eclesiástica
desenvolveu instrumentos que exigiram a confissão do sexo,
convertendo-o em práticas discursivas. Era preciso falar constantemente
das experiências e desejos sexuais. O silêncio em torno da sexualidade
foi quebrado. Tornou-se imperativo moral dizer tudo sobre o sexo. Nada
deveria permanecer encoberto. Tudo que fosse encontrado ou descoberto
sobre a própria vida sexual precisava ser revelado. Segundo Foucault
(1999b), nos séculos XVIII, XIX e XX, os discursos sexuais
proliferaram-se. Nunca se falou tanto da intimidade sexual. O pudor
discursivo diminuíra. As palavras indecentes deveriam ser filtradas para
expressar o sexo, mas ninguém poderia ficar calado. As paixões
deveriam ser mostradas sem inibição. A sociedade burguesa não parecia,
como se acreditava, regida por um regime sexual espartano que exigia
reserva, silêncio e discrição. A sexualidade não estava trancada no
quarto dos casais.
Conforme Foucault (1999b), foi na família burguesa que a questão
sexual apareceu. Os pais começaram a preocupar-se com a vida sexual dos
seus filhos. Ficaram apavorados com a possibilidade da masturbação e,
por isso, resolveram vigiar a sexualidade das crianças, o que
contribuiu para fortalecê-la, fazendo emergir algo que estava
escondido. Múltiplas formas de sexo tiveram expressão na família
vitoriana do século XIX. Contrário à tese foucaultiana, Gay (1999)
atesta que o prazer sexual acomodava-se nos dormitórios domésticos, mas
não se mostrava publicamente. Os desejos eram vividos intensamente na
vida privada, mas escondidos do espaço público. As mulheres e homens
burgueses eram, em público, recatados e pudicos para preservar a
reputação. A sexualidade, pois, permanecia reclusa no espaço doméstico.
De acordo com Foucault (1999b), em vez de mantê-la restrita à esfera
privada, a família decidiu expô-la. Como não sabia o que fazer com
manifestações sexuais tão assustadoras, ela solicitou o auxílio de
profissionais, transferindo aos especialistas a responsabilidade de
tratar da sexualidade do casal, da mulher, das crianças e dos
homossexuais.
Era preciso exibir os detalhes da vida sexual àqueles cuja função era
escutar atentamente o relato para em seguida apresentar o “veredicto”.
Filhos, pacientes, alunos e réus confessariam seus “pecados” a pais,
médicos, pedagogos e juízes. A prática da confissão, inventada pelo
cristianismo medieval para apreender os pormenores da vida sexual,
difundiu-se e tornou-se instrumento científico, utilizado na consulta
médica, na sessão psicanalítica, na atuação pedagógica e nos
julgamentos jurídicos. A sexualidade, que até o século XVII era
analisada, investigada e explorada exclusivamente pela pastoral cristã,
passou a ser a partir do século XVIII observada por diferentes campos
do conhecimento científico. Ela fugiu ao domínio da instituição
eclesiástica, passando a ser controlada pela pedagogia, medicina,
psicologia e economia, que continuavam a fazer uso de técnicas e
procedimentos cristãos. A ciência, pois, apropriara-se do instrumento
sacramental e do objeto de saber pelo qual a Igreja tanto se interessou
desde a sua fundação.
[...] confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros. Confessa-se – ou se é forçado a confessar. Quando a confissão não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior, é extorquida; desencavam-se na alma ou arrancam-na ao corpo (FOUCALT, 1999b, p. 59).
A
sexualidade, portanto, circulava nos mais diversos discursos. Era a
temática predominante nos diários íntimos, nas obras autobiográficas,
nas pregações religiosas, nas confissões dos fiéis, nos hospitais
psiquiátricos, nas conferências médicas, nos processos penais, nas
consultas clínicas, nas aulas dos professores e nos tratados
científicos. A medicina, a pedagogia, a psicologia e a justiça penal
desenvolveram aparelhos discursivos sobre o sexo. Dissecaram-no,
expuseram seus mistérios, exigiram a revelação da intimidade,
realizaram pesquisas, organizaram prontuários, fizeram registros,
produziram diagnósticos e criaram diferentes formas de tratamento. Seus
instrumentos de coleta de informações sofisticaram-se. A ciência foi
aprimorada para analisar as perversões e desvios sexuais, preocupou-se
com as sexualidades polimorfas – deslocando a atenção antes voltada
para a relação conjugal – e devassou a sexualidade das crianças, das
mulheres e dos homossexuais, considerada pecado pela pastoral cristã,
crime pela justiça penal e doença mental pela psiquiatria.
Medicalização do comportamento sexual
Segundo Gay (1999), o século XIX foi um período bastante fértil em
pesquisas e investigações, sobretudo acerca da sexualidade feminina. O
sexo da mulher fora transformado num enigma, difícil de ser
compreendido. Ora parecia uma patologia ora um desvio da natureza.
Médicos, pesquisadores, estudiosos e clérigos debruçaram-se diante da
esquisita sexualidade feminina para observá-la e investigá-la a fim de
melhor apreendê-la. Alguns estudos científicos confirmaram a hipótese
de que as mulheres não eram insensíveis ao desejo sexual e às
experiências eróticas. Contudo, prevaleceram os trabalhos acadêmicos que
divulgaram a tese de que mulheres respeitáveis da sociedade burguesa
não eram acometidas por paixões. As opiniões dos médicos mais ousados
“[...] foram abafadas por vozes muito mais sombrias, que negavam à
mulher sadia e respeitável qualquer inclinação erótica natural” (GAY,
1999, p. 116). Nesse sentido, a sensualidade feminina era vista como
anomalia, aberração da natureza e degradação moral.
Alguns médicos renomados, como Krafft-Ebing, acreditavam que o ato
sexual podia abalar a saúde física e mental das mulheres. Em suas
pesquisas, concluíam que elas eram desprovidas de desejos sexuais e,
por isso, não conseguiam ser estimuladas sexualmente. O sexo não lhes
era prazeroso. Apenas concordavam em fazê-lo para agradar os maridos
que buscavam a satisfação erótica, algo que elas desconheciam. Os
tratados médicos do período vitoriano utilizavam, como fundamento de
suas suposições teóricas, crenças populares e preconceitos amplamente
difundidos, visto que os médicos, assim como os clérigos, estavam
dispostos a moralizar a conduta sexual. Por conseguinte, faziam uso de
conselhos moralistas e idéias puritanas, desconsiderando os relatos
clínicos das pacientes que lhes apresentavam uma sexualidade bastante
diferente daquela teorizada por eles.
A literatura médica do século burguês, até 1914 e mesmo depois dessa data, enveredava por caminhos contrários aos sugeridos pelas revelações de prazer sexual que diários e anotações íntimas, obras de ficção e de pesquisa deixam entrever e investigações psicanalíticas podem comprovar (GAY, 1999, p. 124).
Sigmund Freud, no entanto, teve habilidade para escutar efetivamente o
que as pacientes lhe relatavam sobre suas vidas sexuais e percebeu
que, apesar das repressões, a natureza sexual das mulheres mantinha-se
preservada. Em suas primeiras investigações, ressaltou a complexidade
da sexualidade feminina e postulou que as mulheres, assim como os
homens, são capazes de excitar-se sexualmente, não sendo, pois,
indiferentes às estimulações sexuais. Contudo, as teses psicanalíticas
foram fortemente combatidas. O século XIX assistiu a campanhas que
médicos, clérigos e pedagogos realizaram para infundir medo e gerar
repúdio ao sexo. Eles resolveram organizar um programa de educação
sexual pautado na divulgação de informações distorcidas acerca da
sexualidade, cujo propósito era propagar o temor para reprimir os
prazeres sexuais. Autoridades científicas uniram-se a autoridades
eclesiásticas para propalar conhecimentos pseudocientíficos sobre a
sexualidade, disseminando a ignorância. Propuseram inúmeras teorias
alarmistas que alertavam os indivíduos para o perigo da vida sexual.
No século XIX, médicos e sacerdotes atormentaram a sociedade
burguesa, ao anunciar publicamente que o vício da masturbação poderia
ameaçar a humanidade, pois causava doenças físicas e mentais. Aqueles
que se dedicassem ao “ato solitário” ficariam debilitados. Muitos
ficaram perplexos e assustados com os programas médicos destinados à
prevenção. Campanhas foram desenvolvidas para combater uma prática
bastante recorrente. A masturbação tornou-se caso de saúde pública.
Temia-se o surgimento de um surto epidêmico. O homossexualismo, termo
criado no final do século XIX, também começou a aparecer nos manuais de
medicina e nos processos judiciais. Publicou-se uma profusão de
artigos científicos e pesquisas médicas que caracterizavam o
comportamento homossexual como uma grave patologia psíquica. Além de
pecado, essas “excentricidades sexuais” eram crimes e doenças
perigosas. Os tratados acadêmicos ressaltavam os riscos que os atos
homoeróticos causavam à saúde.
Instaurou-se, portanto, no fim do século XIX, um clima de pânico em
relação ao sexo. Muitos o temiam, embora o desejassem. O surgimento da
sífilis, doença venérea que assolou a sociedade burguesa nas últimas
décadas do século XIX, intensificou o terror que envolvia as atividades
sexuais. Muitos consideravam a sífilis resultado da anarquia sexual
que caracterizou o fim do período vitoriano. Era o castigo divino
aplicado aos indivíduos em virtude do desregramento sexual do final do
século. Alguns acreditavam que se tratava de providência divina para
acabar com a indecência e, por isso, torciam contra a descoberta de
tratamentos eficazes que garantissem a cura da doença. A continência
passou a ser o meio mais eficaz de prevenir-se da sífilis. Discursos
apocalípticos surgiram com o intuito de conscientizar a população dos
males da vida sexual, através da mensagem catastrófica que transmitiam
acerca da nova doença. A sífilis tornou-se forte aliado de médicos e
religiosos no combate à promiscuidade e no projeto de moralização
sexual.
Os conservadores foram rápidos em tomar para si a doença como uma arma em sua luta para restaurar os valores da castidade e da monogamia; ‘a abstinência... tornou-se símbolo de todo o receituário sexual’. [...] Temas de crime e castigo, pecado e penitência, culpa e inocência dominavam o discurso oficial sobre a sífilis. A sífilis era ‘uma doença protestante ideal assim como uma doença ironicamente vitoriana. Uma transgressão, um único contato sexual poderia levar a toda uma vida de sofrimento’. (SHOWALTER, 1993, p. 245-246).
Por essa razão, os médicos começaram a receitar a abstenção dos
prazeres para evitar os transtornos corporais e mentais. Prescreveu-se o
cristianismo para o tratamento das patologias sexuais. Em seu livro
“Tratado sobre as causas da exaustão da vitalidade”, publicado em 1867,
o Dr. Miller recomendou a seus pacientes que “[...] retornassem à
religião e a Cristo, que é, ao que parecia, o mais formidável
adversário dos abusos sexuais que o mundo já conheceu”(GAY, 1999, p.
221). A prática médica era, pois, uma prática moral, que visava
promover a disciplina sexual. Os comportamentos imorais eram tratados
por uma equipe médica, que utilizava preceitos religiosos para
moralizá-los.
Ingerência da Igreja cristã na vida sexual
A Igreja cristã, interessada no combate à sexualidade promíscua, não
apenas avalizava as ações médicas como também organizava programas para
enfrentar a ameaça da masturbação e dos excessos sexuais. Assim como
os médicos se apoiavam nas doutrinas cristãs para formular suas
prescrições, os líderes religiosos adotavam os conhecimentos médicos
para dar consistência a suas orientações morais. Nesse período,
encontrava-se em vigor a Medicina pastoral, área em que médicos e
clérigos se misturavam para advertir os jovens dos perigos das paixões.
Os pressupostos médicos e as doutrinas religiosas uniam-se formando
uma espécie de saber mais sólido para convencer os indivíduos a
abandonar os vícios sexuais. “Assim como os médicos não hesitaram em
invadir os domínios de clérigos e educadores, estes por sua vez
retribuíram a gentileza intrometendo-se no campo do aconselhamento
médico e se uniram aos médicos no chamamento às armas”(GAY, 1999, p.
223).
A doutrina católica, a despeito da sacramentalização do casamento e
da imposição do sexo entre cônjuges, mantinha-se reticente aos prazeres
da vida conjugal, privilegiando a castidade. O casamento era tratado
como um mal necessário, a única forma de purificar o desejo e legitimar
a prática sexual. O catolicismo deixava clara sua preferência pela
virgindade perpétua, mas reconhecendo a dificuldade de segui-la,
sacramentou o matrimônio. Os protestantes, por sua vez, pautavam seu
código moral na idéia de casamento, considerado o fundamento da Igreja.
Eles não faziam objeção ao sexo conjugal nem recomendavam a
continência definitiva. O matrimônio, projeto institucional de valor
inestimável, nunca assumiu a conotação negativa própria dos tratados
católicos. Para o protestantismo, a virgindade não era o estado
espiritual por excelência, representava um estado provisório que
antecedia ao casamento e preparava os noivos para as bodas, cerimônia
tão aguardada. Já que o casamento era tão prestigiado, o adultério foi o
pecado mais combatido e censurado pela Igreja protestante,
diferentemente da Igreja católica, que se preocupou mais com a
masturbação.
No século XIX, o cristianismo continuava interferindo direta ou
indiretamente nas relações amorosas e participando da vida íntima do
casal burguês. A Igreja cristã de modo geral tentou ajustar seus ideais
ascéticos às novas exigências sociais e às mudanças por que passava a
sociedade vitoriana. Entretanto, permaneceu disposta a enfrentar a
sexualidade desmedida, inclusive no matrimônio. Segundo Gay (2000), a
postura eclesiástica em relação ao sexo era ambígua. Ora tolerava a
vida sexual, ora a repudiava energicamente. Os cristãos, não obstante
ficassem aturdidos com a ambivalência dos preceitos morais, procuravam
conciliar a obediência às normas religiosas com a satisfação de seus
desejos. Não abandonavam a vida sexual nem repudiavam os princípios do
cristianismo. “(...) milhares de homens e mulheres devotos parecem ter
achado possível combinar a submissão mais irrestrita à doutrina
religiosa com uma medida considerável de satisfação erótica”(GAY, 2000,
p. 48).
O século XIX mostrou que a sexualidade não era tão incompatível com a
religião cristã, como se acreditava. Conforme Gay (2000), os prazeres
sexuais encontravam expressão nas práticas religiosas. A religião era
considerada, na sociedade burguesa, um lugar seguro para abrigar a
sexualidade, inibindo suas manifestações indesejáveis e assegurando uma
forma de expressão discreta. A religião era, pois, uma via autorizada
de acesso à sexualidade proibida. No final do século XIX, as teses
psicanalíticas sustentavam que a fixação religiosa dependia do
deslocamento das necessidades sexuais, que protegia o fiel da
intensidade dos desejos e garantia simultaneamente a satisfação erótica
por vias indiretas. Os deslocamentos sexuais eram responsáveis pela
constituição e fortalecimento da crença religiosa. A religião, desse
modo, não eliminava os impulsos sexuais; pelo contrário, utilizava-os
como elemento para reforçá-la. Freud (1981) afirmará que os desejos
eróticos constituem a base das experiências religiosas.
A sexualidade no século XX
O século XX assistiu, estarrecido, ao desenvolvimento da psicanálise,
que privilegiou a sexualidade, apresentando-a como o cerne da
existência humana. Nas primeiras décadas, a teoria psicanalítica foi
fortemente contestada. A sexualidade ainda não havia adquirido
notoriedade. Foi necessário quase meio século para que o sexo se
tornasse o propulsor de lutas políticas e campanhas oficiais. O século
XX foi o século da liberação sexual, do movimento feminista, da
descoberta da cura de doenças sexualmente transmissíveis, do surgimento
da pílula anticoncepcional, das reivindicações homossexuais e do
aparecimento da AIDS. Nas décadas de 60 e 70, os novos métodos
contraceptivos desvincularam sexo e procriação.
O ato sexual poderia destinar-se apenas à busca do prazer erótico. As
lutas políticas organizadas pelo movimento feminista reivindicaram
maior liberdade sexual para as mulheres, a valorização do prazer
feminino, o direito ao divórcio e a igualdade entre os sexos. Muitas
conquistas foram alcançadas. A sexualidade tornou-se, de fato, mais
livre, ocupou as páginas dos principais jornais, foi tema de inúmeros
programas televisivos e apareceu constantemente nas revistas femininas.
Foram lançados vários livros de auto-ajuda que apresentavam fórmulas
sexuais e mostravam às leitoras o caminho do orgasmo. Foram publicados
ainda manuais sexuais que ensinavam as melhores posições para alcançar o
prazer.
O orgasmo feminino passou a ser uma obsessão. Muitos sexólogos e
psicólogos surgiram para discutir a dificuldade que as mulheres sentiam
para obter prazer na relação sexual. Modelos de prática sexual e
exercícios eróticos foram inventados para possibilitar o orgasmo. Os
especialistas reforçaram a idéia de que era muito difícil alcançar o
prazer feminino. Por isso, era necessário conduzir as mulheres até ele.
Foram desenvolvidas ainda drogas poderosas capazes de assegurar a
ereção masculina e potencializar o sexo. O mercado pornográfico e a
indústria de artigos sexuais proliferaram-se, erotizando a vida sexual e
transformando o sexo num grande negócio.
A sociedade moderna valorizou a potência sexual e o orgasmo genital.
Segundo Bruckner e Finkielkraut (1981), a revolução sexual impôs um
modelo único de sexualidade e de orgasmo, pautado na genitalidade
masculina. O gozo masculino prevaleceu e serviu de referência ao prazer
feminino. A liberação sexual produziu uma espécie de tirania, visto
que definiu um padrão único de erotismo. A sexualidade ficou
padronizada. A ordem genital masculina é, portanto, hegemônica. Os
sexólogos e médicos apresentam a ejaculação, o orgasmo “visível”, como o
protótipo do prazer. A indústria farmacêutica, atenta às demandas do
mercado, desenvolve receitas e medicamentos que potencializam o orgasmo e
garantem o melhor desempenho sexual possível. O corpo torna-se máquina
de gerar prazer. A “ditadura” do orgasmo se instaura. Mais importante
que o sexo é o gozo que dele resulta. O orgasmo passou a ser
obrigatório. Homens e mulheres foram obrigados a alcançar um prazer
pré-fabricado, programado e racionalizado pelas ciências sexuais.
“Padecemos hoje do dever do gozo genital, da coação da eficácia
hedônica compreendida em termos de ereção/ ejaculação
permanentes”(BRUCKNER; FINKIELKRAUT, 1981, p. 9).
É preciso gozar intensamente. Os indivíduos devem superar os limites
físicos para alcançar um prazer difícil de ser alcançado. Para
senti-lo, é necessário esforçar-se muito, trabalhar continuamente. Cada
gesto é calculado e premeditado. Tudo é controlado para que a relação
sexual seja perfeita e o gozo seja espetacular. É preciso seguir um
conjunto de prescrições médicas para aprimorar e intensificar o
orgasmo. A excessiva erotização torna homens e mulheres reféns de uma
sexualidade ditada, moldada e pré-determinada. A liberdade sexual se
esvai com a supremacia do gozo que, conforme Bruckner e Finkielkraut
(1981), nada mais é do que uma imposição vitoriana, destinada a
controlar a vida sexual dos indivíduos. Em vez de proibir o desejo, ele é
legitimado num espaço e domínio determinados, sem possibilidade de
variação ou livre expressão. “A quem (...) entregar o troféu do melhor
censor: aos puritanos que reprimem os prazeres do corpo ou aos
hedonistas que só liberam o corpo masculino?” (BRUCKNER; FINKIELKRAUT,
1981, p. 63).O modelo masculino de gozo foi transformado numa espécie de
religião que deve ser seguida por todos aqueles que desejam usufruir
de uma vida sexual saudável.
A sociedade atual encontra-se na era do monopólio do orgasmo, do
“sexo de resultados” e do mercado da sexualidade. A imposição do prazer
parece gerar insatisfação e a tirania do gozo continua enclausurando o
desejo. Segundo Guillebaud (1999), a sociedade contemporânea não é
sinônimo apenas de liberação sexual. As conquistas eróticas e as
liberdades individuais que foram alcançadas após os anos “dourados” da
revolução sexual passaram a conviver com a revitalização de tabus
sexuais e a renovação de interditos morais. O hedonismo das décadas de
60, 70 e 80 foi abalado pelo renascimento do puritanismo e
ressurgimento da moral sexual. Prevalece, na atualidade, uma dupla
linguagem do desejo, marcada pela repressão e liberação, interdição e
permissão. Adorno (1969) defende a idéia de que vivemos uma situação de
aparente liberdade sexual, que procura ocultar uma permanente
administração do desejo e consolidação de tabus sexuais.
O surgimento da AIDS contribuiu para gerar reações de resistência à
liberalização da sexualidade. Acreditava-se que a nova doença decorria
da anarquia sexual e do colapso dos valores morais. Profetas do
apocalipse definiam o final do século XX como um período de horror,
marcado pela falência da instituição familiar, pela ruína da religião e
pela instauração do caos sexual com a revolução proclamada pelos
movimentos feministas e homossexuais. Uma forte reação de moralização
revitalizou a família e fortaleceu os códigos de decência.
As epidemias de doenças venéreas são a forma apocalíptica de anarquia sexual, e a sífilis e a AIDS ocuparam posições semelhantes nos finais dos séculos XIX e XX como doenças que parecem resultar de transgressões sexuais e que geraram pânico moral. Ambas as doenças deram margem a campanhas de castidade sexual e social e caracterizaram o recuo na liberalização das atitudes sexuais (SHOWALTER, 1993, p. 245).
As
campanhas pró-abstinência sexual ganharam fôlego nos Estados Unidos em
virtude do crescimento dos casos de AIDS e de gravidez entre
adolescentes. O sexo é apresentado como um perigo que causa doenças
sexualmente transmissíveis e gravidez precoce. Só é possível estar
protegido dele não o praticando. A continência tornou-se caso de saúde
pública e política de governo, ditada por preceitos evangélicos. Na era
dos movimentos pentecostais, a AIDS passou a ser um castigo divino, do
qual só é possível livrar-se através do repúdio às práticas sexuais.
Os líderes evangélicos participam dos programas de governo pela
preservação da virgindade. O filho do pastor Bile Graham, Frank,
convenceu o presidente George Bush a utilizar na campanha pela
abstinência sexual na África um terço dos US$ 15 bilhões que seriam
destinados aos projetos de combate à AIDS. O atual governo
norte-americano parece preocupar-se mais com a castidade dos jovens do
que com a prevenção de doenças sexuais.
Associações, organizações e movimentos sociais unem-se em prol da
continência sexual. Alguns grupos produzem “anéis de castidade” e
camisetas que estampam a frase: “abstinência, a nova revolução sexual”.
Eles organizam passeatas e fazem eventos para atrair novos adeptos,
divulgando mensagens alarmistas que disseminam o pavor e veiculam
informações falsas para aumentar o medo em relação ao sexo. Afirmam que
os métodos contraceptivos não são eficazes, que a atividade sexual
sempre produz efeitos devastadores para o organismo e que o vírus HIV
pode ser transmitido pelo suor ou lágrimas. Como campanhas patrocinadas
pelo governo dos Estados Unidos difundem conhecimentos infundados e
reproduzem preconceitos sociais?
Além da ausência de informações científicas, uma das características mais danosas do movimento é que leva a política do medo até o quarto das pessoas. Fora os riscos de não usar contraceptivos, o que acontecerá com uma geração que tem medo da sua sexualidade? (LOBO; ATHAYDE, 2005, p. 17).
A conduta sexual no pentecostalismo
São raras as obras e pesquisas que discutem essa temática. Estuda-se o
liberalismo sexual vigente no final do século, mas não são analisadas,
em contrapartida, as restrições que as novas correntes evangélicas
impõem à vida sexual dos fiéis. Enquanto nas últimas três décadas a
sociedade moderna foi invadida por forte apelo sexual, os segmentos
pentecostais se proliferaram com um discurso que proíbe o sexo antes do
casamento. As prescrições sexuais se multiplicam. A sexualidade, além
de despertar o interesse das ciências, atrai a atenção dos pregadores
que não param de mencioná-la. Paradoxalmente, aquilo que é proibido
ganha destaque nos sermões. Não há silêncio nem discrição nos discursos
que debatem a vida sexual dos cristãos.
Conforme Dantas (2006), as orientações sexuais do movimento
pentecostal voltam-se ao controle dos desejos, à preservação da
virgindade pré-nupcial e à realização do casamento. Valorizado pela
Igreja, o matrimônio, indissolúvel e monogâmico, legitima e purifica o
sexo, considerado pecado de natureza grave quando ocorre fora do
casamento. Entre cônjuges, ele é estimulado, pois consolida o vínculo
conjugal e garante a unidade espiritual do casal. A relação sexual é,
portanto, simultaneamente valorizada e depreciada. Muito se fala dela e
muito se espera por ela. A sexualidade está presente no discurso dos
fiéis, que não cansam de imaginar como será a noite de núpcias. O sexo,
considerado em muitos casos um ato profano, aparece aos fiéis casados
como um presente divino.
A continência sexual antes do matrimônio faz parte do imperativo
moral de praticamente todas as denominações evangélicas. Nas Igrejas
protestantes históricas, os líderes religiosos procuram tornar pública a
transgressão à norma da virgindade pré-conjugal. O casal que viola a
regra deve fazer uma confissão pública perante a audiência. Segundo
Pinezi (2005), nos casos em que a infração é explícita, a publicização
do pecado é inevitável. O fiel deve passar pelo constrangimento de
reconhecer publicamente o erro cometido e demonstrar seu
arrependimento. Essa estratégia eclesiástica visa demarcar os limites
entre o permitido e o proibido, ratificando, desse modo, o código
institucional que regula a conduta da comunidade religiosa. É uma
espécie de prática corretiva que visa educar o comportamento sexual da
platéia e assegurar a internalização coletiva da lei. Conforme Machado
(1996), além da confissão pública, algumas congregações, em virtude do
pecado sexual, vetam a participação do fiel na Santa Ceia ou o expulsam
temporariamente da Igreja.
Para a maior parte das Igrejas protestantes e pentecostais, os jovens
não devem apenas adotar a virgindade. É preciso reprimir os desejos e
precaver-se das práticas sexuais solitárias. A masturbação sempre foi
um tema bastante delicado e controverso nos segmentos pentecostais.
Muitos cristãos recorrem ao auto-erotismo para controlar a libido e
evitar as atividades sexuais. Por essa razão, muito se discute no meio
evangélico sobre a natureza da masturbação. As posições eclesiásticas
são variadas. As denominações mais legalistas consideram-na pecado
grave e, por isso, recusam-se a admiti-la e autorizá-la.
As congregações mais liberais, por sua vez, concebem a masturbação
como uma forma de aliviar os impulsos e garantir a preservação da
virgindade. Contudo, poucos pastores a recomendam aos fiéis solteiros.
Acredita-se que as fantasias e imagens eróticas que a acompanham podem
ser pecaminosas. Se a masturbação fosse apenas um ato mecânico,
desprovido de desejos e imaginações, seria mais fácil aceitá-la. Ela é
tolerada apenas nas situações em que é difícil resistir à força da
libido. Porém, no caso da ejaculação noturna, o consentimento é dado
sem ressalvas, pois, segundo alguns líderes religiosos, ela é um meio
automático de liberar as excitações do corpo e reduzir a pressão dos
impulsos.
Além da masturbação, a homossexualidade é uma temática muito debatida
no universo pentecostal. Via de regra, as denominações evangélicas
condenam fortemente as práticas homoeróticas e repudiam o sexo anal.
Elas demonstram aversão às relações homossexuais e as qualificam de
comportamentos contrários à natureza e às leis divinas, de atuação
demoníaca ou doença espiritual. Normalmente, as relações orais e anais
são combatidas, sendo prescrito apenas o sexo genital. Várias Igrejas
censuram as perversões e ousadias sexuais, pois acreditam que são
obscenas e promíscuas. Atribuem ao homossexualismo o surgimento da AIDS,
percebida como uma espécie de castigo divino decorrente da vulgaridade
de determinados atos sexuais.
As congregações evangélicas, no entanto, assumem posturas mais
flexíveis em outros âmbitos da sexualidade. Algumas são a favor do
controle da natalidade e do uso de métodos anticoncepcionais, práticas
condenadas pela Santa Sé Romana. Em 1958, a Igreja Anglicana, seguindo
as determinações do Conselho norte-americano de Igrejas protestantes,
resolveu autorizar o uso de procedimentos contraceptivos, cabendo aos
fiéis e aos médicos a decisão quanto à necessidade de sua utilização.
Desde então, novas agremiações pentecostais e protestantes aprovaram as
medidas de contracepção e incentivaram políticas destinadas ao
planejamento familiar. Algumas delas mostraram-se condescendentes com o
uso da camisinha, preservativo masculino fortemente atacado pela
Igreja católica, que o associa à devassidão sexual. Símbolo do combate à
AIDS, a camisinha recebeu apoio de vários segmentos neopentecostais.
Oaborto, contudo, continua sendo um tabu difícil de ser discutido. É
classificado indiscriminadamente como pecado e crime. Sob hipótese
nenhuma, é aceito.
Considerações Finais
A sexualidade, portanto, sempre exerceu fascínio sobre o
cristianismo, que não cansou de comentá-la, discuti-la, normatizá-la,
proibi-la e excitá-la. A Igreja cristã, mais especificamente a Igreja
católica, produziu tratados com o propósito de convencer as mulheres a
evitar o casamento e dedicar-se à castidade bem como redigiu documentos
destinados a ensinar os monges a proteger-se dos desejos que ameaçavam
a santidade da alma. Nos primeiros séculos da era cristã, o clero
católico procurou combater o matrimônio, instituição laica e privada,
recorrente entre os membros da aristocracia romana. Diante de sua
permanência, a Igreja promoveu, com certa reticência, a
sacramentalização do casamento, autorizando-se, desse modo, a penetrar
no quarto do casal, vasculhar sua intimidade e estabelecer os limites
entre o permitido e o proibido no âmbito da sexualidade. Homens que, em
tese, se privavam de viver a própria sexualidade ficaram responsáveis
por orientar a vida sexual de fiéis que não sabiam o que fazer com os
próprios desejos e temiam suas manifestações. Tornar o matrimônio uma
instituição pública e sagrada permitiu ao clero romano consolidar seu
poder político e ampliar sua intervenção na vida íntima dos fiéis. O
que pode gerar mais poder a uma instituição do que a capacidade de
controlar a intimidade das pessoas e ter acesso a seus segredos?
A Igreja desenvolveu tecnologias de extração da verdade de si, como a
prática da confissão, para descobrir o que cada sujeito esconde de sua
sexualidade e, dessa forma, aumentar seu poder sobre os corpos dos
fiéis. O clero estava interessado em conhecer a vida íntima dos
cristãos para melhor controlá-la e aperfeiçoar os códigos de
regulamentação dos desejos e da atividade sexual. As técnicas de
interrogatório e os procedimentos confessionais possibilitavam a
revelação de verdades secretas, desconhecidas do próprio sujeito. O
dispositivo da confissão determinava que o verdadeiro cristão deveria
“despir” a sexualidade diante do confessor que observava tudo com
atenção e interesse. A pastoral católica inaugura a prática da
exposição da vida sexual, sem pudores e inibição.
Além da ciência, o protestantismo e logo em seguida o pentecostalismo
aprimoraram as técnicas de vigilância e observação da sexualidade,
desenvolvidas pelo catolicismo medieval. Segundo Weber (2004), a
Reforma Protestante produziu uma forma de dominação e regulamentação da
vida privada que se fazia sentir mais fortemente entre os fiéis, pois
penetrava de fato nos espaços secretos da intimidade. A sexualidade
tornou-se ainda mais central do que já era. Nas Igrejas protestantes e
pentecostais, tudo gira em torno dos desejos e prazeres sexuais dos
fiéis. As pregações, os documentos teológicos, as orientações
doutrinárias e os códigos de conduta fazem constante referência à vida
sexual. É preciso vigiá-la, observá-la e confessá-la para não perdê-la
de vista. Os seus rastros devem ser seguidos. Nas cerimônias
religiosas, ela aparece para ser simultaneamente cultuada e combatida.
Desde suas origens, o cristianismo continua preservando o espaço da
sexualidade em seus cultos, como se dela dependesse para permanecer
vivo.
A história da sexualidade ocidental, narrada sucintamente nesse
artigo, permite-nos constatar que o cristianismo sempre se incomodou
com a sexualidade, intensificando gradativamente seu sistema de
controle para mantê-la sob a tutela e orientação da Igreja. Líderes
eclesiásticos promoveram a disciplina do corpo, a regulamentação do
prazer, a normatização do desejo e o estímulo à exposição da intimidade
sexual por meio dos procedimentos confessionais. Por intermédio das
confissões, o clero adquiriu um tipo específico de saber que ampliou o
poder de dominação e controle da Igreja. As estratégias eclesiásticas
consistiam em utilizar o saber obtido nas práticas confessionais para
dominar o corpo e o desejo dos fiéis, tornando-o dócil e obediente, com
o propósito de consolidar a autoridade moral e o poder político da
Igreja cristã.
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Endereço para correspondência
Bruna Suruagy do Amaral Dantas
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Rua Ministro de Godói, 969, 4º andar, Bloco A, Perdizes, CEP 05015-901, São Paulo-SP, Brasil
Endereço eletrônico: brunasuruagy@gmail.com
Bruna Suruagy do Amaral Dantas
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Rua Ministro de Godói, 969, 4º andar, Bloco A, Perdizes, CEP 05015-901, São Paulo-SP, Brasil
Endereço eletrônico: brunasuruagy@gmail.com
Recebido em: 30/01/2009
Aceito para publicação em: 16/03/2010
Acompanhamento do processo editorial: Rita Maria Manso de Barros
Aceito para publicação em: 16/03/2010
Acompanhamento do processo editorial: Rita Maria Manso de Barros
Notas
*
Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
(Psicologia Social) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
PUC–SP, São Paulo, SP, Brasil; Doutorado com bolsa do CNPq.
FONTE:
http://www.revispsi.uerj.br/v10n3/artigos/html/v10n3a05.html
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