Em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento. (Colossenses 2:3)

Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por essas coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.(Efésios5:6)
Digo isso a vocês para que não deixem que ninguém os engane com argumentos falsos. (Colossenses 2:4)

16 de março de 2014

Livrando a Mulher de Jó do Banco dos Réus

 
Jó e sua esposa (Quadro de Albrecht Dürer - 1471-1528)

"Então sua mulher [de Jó] lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre". (Jó 2.9 - 
Almeida, Revista e Corrigida)

Sem dúvida alguma, uma das mulheres mais detestadas de toda a Bíblia (senão a mais detestada) é a mulher de Jó. Embora a Bíblia não mencione o seu nome, a tradição conferiu-lhe o nome de Sitis.[1] Todo este sentimento de aversão a ela se deve ao texto citado acima. Apenas para termos uma pequena idéia sobre como a mulher de Jó foi compreendida pela cristandade, cito Francis Andersen, que faz um curioso comentário a seu respeito:

"Os cristãos de modo geral têm sido mais severos com ela [a mulher de Jó] do que os judeus e os muçulmanos. Ela era a aliada de Satanás. Agostinho chamou-a de diaboli adjutrix; Crisóstomo: 'o melhor flagelo de Satanás'; Calvino: organum Satani. Segundo este ponto de vista, ela tentou seu marido a auto-condenar-se ao conclamá-lo a fazer exatamente aquilo que Satanás predissera que faria".[2]

Já o teólogo Russell Norman Champlin, citando Samuel Terrien, menciona o ponto de vista favorável deste autor francês para com a atitude da esposa de Jó. Eis as suas palavras:

"Samuel Terrien (...) interpreta que a esposa de Jó só estava tentando vê-lo morto e livre de sofrimentos, supondo que uma maldição tivesse o poder de eliminar os sofrimentos dele. Em outras palavras, ela era uma antiga advogada da eutanásia. (...) Ela raciocinava que, se Jó amaldiçoasse a Deus, uma retaliação divina mataria o homem, pondo fim aos seus sofrimentos. (...) Terrien chegou a supor que o ato da mulher de Jó tenha sido inspirado pelo amor, por mais ignorante que tenha parecido ser".[3]

Esses comentários, longe de esclarecerem qual era a verdadeira intenção da esposa de Jó ao dizer aquelas palavras ao seu marido, acabam promovendo mais a polêmica do que uma possível solução em torno do assunto. Mas, afinal, que sentimentos levaram a esposa de Jó a proferir palavras tão duras ao seu marido num dos momentos mais difíceis da sua vida (pois ele já havia perdido seus filhos e seus animais, bem como, na presente situação do texto, até mesmo a própria saúde)? Ora, acredito que pesquisar o que o original diz nesse texto pode nos ajudar a tentar solucionar essa questão. Eis o que diz o texto de forma literal:

"E disse a esposa dele a ele: [você] ainda se mantém firme em sua integridade? Abençoe a Deus e morra".[4]

Talvez, ao ler este verso, você tenha se perguntado: "Espera aí, você traduziu errado! A tradução correta não é: 'abençoe a Deus e morra'?". Bem, quando lemos o original, a palavra que aparece no verso 9 é o verbo hebraico barak, cujos significados básicos são: "ajoelhar, abençoar, louvar, saudar e amaldiçoar (usado de forma eufemística)".[5] Perceba que quatro dos cinco significados básicos deste termo estão associados a aspectos positivos ("ajoelhar, abençoar, louvar, saudar"), enquanto que apenas um significado, e ainda assim usado de maneira eufemística, está relacionado a algo negativo ("amaldiçoar").

Se pesquisarmos a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento Hebraico, que é datada do III século a.C.) veremos que ela não nos ajuda a decifrar o dilema linguístico que há no hebraico, pois ela apresenta assim Jó 2.9 (de forma bem ampliada):

"Passado muito tempo disse-lhe sua mulher: 'até quando perseverarás dizendo, [1] vede, espero ansiosamente ainda por um pouco de tempo, aguardando a esperança da minha salvação', [2] mas eis que é apagada tua memória da terra, os filhos e filhas do meu ventre; dores de parto e aflição em vão - esgotei-me pelo labor! [3] tu mesmo em podridão de vermes permaneces, passas a noite ao ar livre; [4] e eu, tenho andado errante e pedinte de um lugar a outro, e de casa em casa; tenho esperado o sol - quando ele se porá, para que amenize os labores e aflições que agora me cercam? [5] mas diga uma palavra ao Senhor, e morra!".[6]

Mas então, como podemos entender Jó 2.9 à luz de seu contexto imediato? Ou melhor, como deveríamos interpretar (a partir da tradução que demos a Jó 2.9), por exemplo, Jó 2.10, quando Jó diz à sua esposa: "Como fala qualquer doida, assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?". Bem, se a nossa tradução estiver correta em 2.9 e, portanto, "Sitis" abençoou Jó em vez de amaldiçoá-lo, logo, segue-se que no verso 10 Jó não condena a sua esposa por tê-lo instigado a "amaldiçoar" a Deus, mas sim chama a sua atenção por ela dar a entender com as suas palavras que não acreditava que ele sobreviveria àquela doença e a toda aquela situação (a perda dos animais, dos filhos etc). Neste sentido, então, Jó a adverte quanto ao fato de que eles ainda receberiam a bênção de Deus no futuro (ele diz: "receberemos o bem de Deus").

A favor de nosso ponto de vista podemos argumentar ainda que as palavras da esposa de Jó sugerem "um desejo sincero de ver Jó livre dos seus tormentos (pela morte)", uma vez que ela não parece ver "a possibilidade de recuperação da saúde [dele] e da restauração dos bens".[7] Essa hipótese parece ser bem razoável e também parece coadunar mais com a realidade, pois, quando passamos por momentos muito difíceis em nossas vidas (assim como Jó e a sua esposa passaram), é natural que um dos cônjuges, ou até mesmo os dois, façam um balanço negativo da realidade que estão enfrentando, chegando, inclusive, a desenhar um futuro sombrio pela frente. De qualquer forma, como deveríamos ver a esposa de Jó: como "bandida" ou como "mocinha"? Quem sabe, algum dia ainda saberemos a verdade...

Abraços,

Autor: Carlos Augusto Vailatti
__________________
[1] BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (org). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999, p.215.
[2] ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989, pp.89,90.
[3] CHAMPLIN, R.N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001, p.1871.
[4] Esta é a minha tradução pessoal do texto.
[5] HARRIS, R. Laird. (org). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998, p.220.
[6] O texto sem negrito aparece apenas na Septuaginta. Já os textos em negrito são aqueles que têm o seu correspondente em hebraico. Essa tradução em português da Septuaginta encontra-se em: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html.
[7] ANDERSEN, Francis I. Op.Cit., p.90.



FONTE:
http://blogdovailatti.blogspot.com.br/2009/03/livrando-mulher-de-jo-do-banco-dos-reus.html#comment-form

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